Eu estava só, vivendo algum tempo na Provincia di Latina, porque estava cansado de tanto ver feijoada na minha frente, e o império dos esgotos determinar relações, e padronizar condutas. Estava cansado de delinquentes sacerdotais e estelionatários com gizes à mão. Afinal, durante tantos anos vivemos de rótulos e simulações religiosas, de anéis de formatura e cartões de apresentação com balanças douradas (ou doiradas), de engodo jurídico e de um sistema educacional e político que prima pela opressão de seus pares, pelo mercenarismo e pela manutenção do status quo.
E, neste caso, não importa muito se alguém chega ao governo ou à cátedra, montado a jegue ou em aviões, se conhece a língua dos botecos e churrascadas ou dos seminários universitários. Não importa que chegue aos postos de direção, aos púlpitos e ao governo, um louco avarento, um nazista, um antissemita ou um fanfarrão midiático! No final, vale ainda e sempre o poder do mais forte, a surra moral, as mentiras de Nicéia e Wittenberg – e o dinheiro na maleta!
Rótulos, apenas rótulos, lamentáveis rótulos! Há uma incessante e desastrosa busca por marcas, estereótipos e máscaras. Um indisfarçável amor pela mediocridade e idiotices pós-modernas. Nessa marcha, as pessoas vão perdendo o brilho, a grandeza, a direção e, pouco a pouco, por medo de enfrentarem os seus próprios abismos, atribuem ao outro o peso da culpa pelos males do mundo, e pelos infernos (todos quantos se possam criar pela superstição humana e desvarios religiosos).
Por isso mesmo, estamos vivendo em um tempo pesado, com pessoas doentes em todos os sentidos, carregando cavernas fantasmagóricas, com marcas artificiais de violência, de espantos e temores. Com pavor de se abrirem as janelas da casa porque lá fora habita a escuridão, o desfazimento do ser e os ruídos mórbidos.
Em que medida é visível o conjunto de tudo que se nos apresenta?
Pois, então, não poucas vezes, debilitados e corroídos pelos nossos próprios enganos e más ações, envenenamos um mundo que continua ali…
Lá fora não habita a escuridão, o desfazimento do ser e os ruídos mórbidos. Lá fora reinam o sol e seu fulgor, a leveza e a Poesia. Reinam a luz e as Forças da Creação. E uma voz que ecoa desde sempre, desde bereshit:
… é muito bom …
Dentro, bem dentro de cada um, também há sóis, luzes, calor e música. Há motivos para desfazer a nuvem, ou ver por intermédio dela, romper os obstáculos ou utilizá-los como referência, e prosseguir. Mesmo quando é noite, não é apenas noite, pois é possível ver estrelas, encontrar a lua…
Nesta noite, então, eu estava ali no mio paesino, e passei horas vendo o movimento dos muitos velhinhos solenemente sentados naqueles bancos que se dispõem na Via entre o Castello Baronale e a Chiesa di San Francesco, bem ali diante dos bares. E, passando, ouvi deles os reclamos da Grande Guerra, de suas vidas e de suas dores. Um deles, o mais convicto, disse ao outro:
La guerra è la guerra della coca-cola...
E, em seguida, levou seu caffé macchiato à boca, com os olhos em algum lugar, e marejados… Bem próximo dali, havia uma menina de três ou quatro anos, brincando nas escadas da Chiesa di San Francesco. E eu olhava o Castello Baronale, à distância, e pensando nas mãos que o ergueram, e na Guerra vã dos velhinhos, quando, de repente, la ragazzina gritou para sua mamma:
Mamma, guarda, la Luna!!!
E, olhei para seus olhos sorridentes, sentindo o peso das pedras que sustentam aquele Castello saírem dos meus olhos e voltei-me para a lua. Sim, lá estava ela, crescendo, aparecendo, iluminando, por entre os adornos das construções antigas… A lua, iluminada-iluminando!
Afinal, nem tudo é pedra, história e pensamento – nem tudo é política de escarro nem ignorância certificada ou fumaça religiosa! Alguma coisa é o grito de uma criança encantada com a lua! Aquela criança encheu meus olhos de alegria, de tal alegria (indizível) e a olhei, como quem olha D-us: olhar de ternura, de agradecimento, de afeto e de redescoberta!
Porque a lua estará sempre ali, renovando os tempos, “as tardes e as manhãs” de todos os dias. Nem o Castello nem a Chiesa e nem meu Quartiere Ebraico; nem a Guerra dos velhinhos, nem salas de aula infectadas de covardia e estupidez, nem governos de jegue ou políticas de sex shop (viva o Serjão!) – nada, absolutamente nada, foi capaz de desfazer a lua.
Mas, para alcançar e compreender isto, é preciso ouvir as vozes das crianças, porque trazem o segredo dos mundos, a substância da vida e a Poesia plena!
Foi assim, como aquela criança nas escadas, que os homens, um dia, olharam para o alto e começaram uma busca que os levou a terras distantes, vencendo medos e mitos, vencendo ursos nas esquinas e a ferocidade dos répteis (não eram esses idiotas de hoje!)
Mamma, guarda la luna, guarda, mamma!
É como dizer para o ventre que nos forma e para os lombos que nos trazem, talvez até para os fantasmas e marcas que nós mesmos gravamos em nós, impiedosamente, com a mesma voz daquela ragazzina, pulando em nossos degraus, ridicularizando preceitos medievais e principescos – e vencendo nossas escadas, e nossas inúteis guerras:
la luna, guarda!
Entrei, depois, na Piccola Caffetteria, um bar que fica entre o Castello e esta Chiesa di San Francesco, onde estive anos antes com meu filho. Precisava de um caffé macchiato, precisava de uma Via movimentada e precisava de uma cadeira. Fui atendido, então, por dois funcionários:
– prego, un tramezzino ma non di maiale e caffè macchiato.
– prego, può mangiare, è buono! Disse o primeiro.
– Non, lascia stà, lui è ebreo e non mangia maiale come io – Replicou o segundo, um jovem muçulmano.
E, olhando-me, sorriu com a mesma satisfação do encontro Esav-Ya’akov, que só é possível em terras como a Itália, aliás, como o sul da Itália, em Napoli especialmente. E, com o mesmo ininterrupto sorriso, preparou-me um delicioso suco di arancia e un tramezzino senza maiale!
Naquele momento, eu não estava de kippah nem ele com sua cobertura islâmica. E, sentimos, apenas com a troca de nossos sorrisos e ternos olhares, que nossos mundos não estavam tão distantes assim – a distância normalmente é forjada a golpes de radicalismos!
Naquela noite (para mim, pois para as pessoas que amo, na América, era apenas a metade do dia) eu ri de mim e para mim mesmo. Bem, naquela noite, eu comprei um pacific aromatic e um vino rosso em tetrapak para, simplesmente, descobrir que a noite não é para todos no mesmo momento e, portanto, aquela criança encantada não é para todos, no mesmo momento… A lua não é para todos!
Io guardo una piccola principessina, di dorati capelli,
profumata e bianca pelle:
una principessina tenra e delicata, como botão de flor se abrindo,
rindo abertamente por todos os cantos,
como se nada pudesse importar, somente ela.
ah, eu te vejo, figlioleta mia,
eu te vejo desde longe, de onde venho, sem saber a razão
e tenho pouco para te dar: cioccolatini e molta caramella!
e asas para te cobrir, e mãos para te abençoar. Repousa, principessina,
e aquece os seios da mulher amada,
enquanto te seguro para não caíres
e te cubro com o manto de um afeto que de outras plagas trago.
Pois, depende dos movimentos que fazemos, depende da nossa vontade-ação, buscando, criando, reagindo e avançando os olhos para a lua. Porque a lua não tem história de sangue nem de amor. Não há lágrimas na lua nem sorrisos. A lua é a lua sempre! E os nossos castelos trazem, ainda, o som, surdo, das vozes do tempo, dos monstros, das doenças de que fomos acometidos e dos males nos esgotos que aceitamos, complacentes, pelos quais, fomos lançados sob pedras – pesadas pedras.
Va bene, amanhã vou a Capri, bem cedo, ver o sol de Napoli emprestado a Capri, e a sua beleza e movimentação. Enquanto vejo o sol de Napoli sobre Capri, as pessoas que amo, na América, estarão no meio de suas noites…
… La luna, mamma, guarda la luna!
© Pietro Nardella-Dellova
(A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS E OUTROS MONÓLOGOS. São Paulo: Editora Scortecci, 2009, pp 168 e segs.)