Em Fondi, Itália, um jovem professor me encontrou em um Bar Café, bem próximo do antigo Quartiere Ebraico. Ele me procurava fazia algum tempo – e me achou, pois vinha em direção ao mundo judaico.
Por isso mesmo, encheu-se de satisfação e falou-me da sua vontade de conhecer o Judaísmo para encontrar D’us, quiçá, vislumbrar um caminho e vencer o mal (ou Mal, como estava mais acostumado).
Mas, porventura, – eu perguntei a ele – já te ocorreu que HaShem (ou D’us, se quiser) não quer (e nem pode) ser encontrado? Por acaso, já pensou na possibilidade do Judaísmo não ser um caminho nem te dar certeza alguma sobre um mundo que não será alcançado? Pensou, ainda, que na formação judaica, não há preocupação nenhuma com o mal ou o bem (ou Mal e Bem, se quiser) e nem há teologia alguma a ser apreendida? Pensou nisso?
Pois bem, no Judaísmo não estudamos, não procuramos e nem vendemos HaShem.
O Judaísmo não tem como escopo o encontro com Ele (ou dEle). Não podemos dizer nada sobre o Mal ou o Bem, vez que são fantasias persas, gregas, medievais, reelaboradas com os cultos africanos. Veja, apenas nos ocupamos, no contexto judaico, dos comportamentos bons ou maus, das escolhas boas ou más. No Judaísmo, não nos projetamos para um mundo futuro e, sendo futuro (se o for), virá naturalmente, independentemente e dentro do que HaShem possa pretender (se pretender alguma coisa).
Não há mágicas, não há fórmulas nem rezas que possam modificar os tempos, os ciclos e a suposta Vontade do Eterno!
E, assim, sem futuro nem surpresas, aprendemos a olhar nossas mãos, nossos pés, nossos olhos, nossos ouvidos, nosso corpo, nossos sentimentos, nossos conhecimentos e tudo aquilo que se nos chega para realização. Ensinamos aos nossos filhos que um precipício é mesmo um precipício (e não um conceito). Ensinamos que um jardim é mesmo um jardim (e não uma fantasia). Ensinamos que determinadas cidades devem ser abandonadas porque concentram vampiros demais, sanguessugas demais, destruidores demais.
E deixamos claro que, sobre nossa mesa, um pão deve ser justo, feito por mãos justas e adquirido com recursos justos, pois, ao pronunciarmos alguma palavra (entre nós) não o fazemos para agradecer (pois filhos não agradecem a seus pais), mas, ao menos as pronunciamos para abençoar HaShem, a fim de termos certeza de que aquele pão não tem outra origem senão a de justiça, bondade e leveza…
Ensinamos, também, que um inimigo é mesmo um inimigo (um inimigo sempre!) E o melhor para nós, é que o inimigo esteja bem, muito tranquilo, ocupado (muito ocupado!) e que more longe de nossas casas, longe mesmo! Mas, o inimigo não é “alguma coisa” caída do “céu”, um ser sobrenatural, um revoltado em “bereshit” ou um ente espiritual com desejos sexuais pervertidos. O inimigo tem mãos e pés, tem fome e sede, tem visão e olfato, assim como nós. Mas, ele, o inimigo, não tem mesa nem pão justos, não tem limites nem conhece princípios. Ensinamos que o inimigo não é a mesma coisa que adversário. O adversário é adversário em um cenário de competição; o inimigo, o amalequita, é o destruidor (o fascista, o nazista, o nazifascista, o opressor, o explorador, o racista, o antissemita, o islamofóbico, o misógino)
Diferente de nós, quando ele tem fome, come sem medida nem critério. E lança as mãos e avança seus pés, não se importando com este ou com isso. E quando vê ou percebe alguma coisa, o inimigo quer para si, em um incontrolável desejo mimético, arrebatador, destruidor e fatal. Por isso, sempre desejamos que nossos inimigos tenham tudo, ocupem-se bastante e fiquem muito cansados, a fim de que se esqueçam de nós, dos nossos portões, dos nossos bens, dos nossos filhos e de nossas vidas.
Mas, nós, que não sabemos nada dos seus portões, dos seus bens e dos seus filhos, todavia, não nos esquecemos deles, nunca nos esquecemos que são inimigos (e queremos que estejam bem, e longe de nós).
No Judaísmo, não discutimos conceitos teológicos, não defendemos dogmas religiosos, não buscamos fiéis ou infiéis, não levamos ninguém para a Sinagoga, não formamos missionários. Não desprezamos nem aprovamos a religião de outrem, pois o Judaísmo é o nosso melhor silêncio, um singular e respeitoso silêncio. E, assim, nunca estamos nas praças ou esquinas (nem nos palcos religiosos). O palco religioso não é, de fato, para judeus… Ao contrário, estamos envolvidos com o nosso suor, com os nossos livros, com as nossas Sefirôt e com nossos estudos.
Mas, não estudamos o Eterno, e sequer pronunciamos o seu Nome! Não pedimos nada a Ele, mas, com um profundo e respeitoso sentimento de gratidão e reverência, abençoamos seu Nome, todas as manhãs e todas as tardes e, ao anoitecer, olhamos para nossos filhos, cobrindo-os ternamente e lançando-os na Presença de HaShem…
Amamos festas, contamos no dedo os dias que faltam para a próxima festa e o que devemos fazer para que elas sejam alegres, maravilhosas e humanas. Nossas Festas não projetam nada de mágico para o futuro nem devem ser lidas como profecias. Nossas Festas são apenas Festas de memória, com as quais, contamos a nossa história (para os nossos filhos).
Sim, meu caro, com elas contamos a nossa própria história e, por isso mesmo, há milênios fazemos o mesmo pão da amargura e cativeiro, e não comemos, naquele período, fermentos para não nos esquecermos de que sair da escravidão é um ato apressado, um ato que não permite conforto nem reflexão.
Não temos nenhuma vergonha de dizer, em nossas Festas, que fomos escravos! Comemoramos nossas colheitas, o nosso momento de constituição integral no Sinai, e comemoramos nossos novos períodos de trabalho, muito trabalho, lembrando-nos das más ações, dos maus comportamentos em um ciclo completo, das privações, das cabanas (nas quais moramos no deserto). Ademais, lembramo-nos dos momentos em que nossos inimigos destruíram nossos palácios, nossos altares e, de como, fortalecidos em nossos princípios, nos livramos deles, lutando, lutando muito, com espadas, garfos e pedras (reais).
Lembramo-nos do nosso estado em terra estranha e dos governos, persas, católicos, fascistas, stalinistas e nazistas, que tentaram nos apagar da história e de como pessoas do nosso povo, de carne e ossos (homens e mulheres) mantiveram seus propósitos claros, seu amor inabalável e, com sabedoria, utilizaram tudo o que haviam aprendido em casa, com seus pais e irmãos, para decidirem por alguma coisa, para fazerem alguma coisa e definirem que não temos que desaparecer da terra.
Nossos dias não são ocupados, integral e tresloucadamente, com lufa-lufa. Não! Nós paramos, sim, há um dia – Shabat, deliciosamente especial, em que paramos para comer um pão trançado, feito de forma afável por pessoas satisfeitas com HaShem. Paramos para beber o vinho, para comer frutas, doces e mel, para cantar com nossos filhos e filhas e, de mãos dadas, dançarmos, cutucando cada um deles, fazendo-lhes cócegas, dando gargalhadas e cheirando seus cabelos. Mas, não fazemos sermão religioso para eles neste dia!
Também, paramos, neste dia, para nos encontrarmos com outras pessoas a quem amamos, os nossos amigos que, como nós, comeram do seu pão trançado, feito por mãos amáveis e satisfeitas com HaShem, e beberam do seu vinho e comeram frutas, doces e mel, que cantaram com seus filhos e filhas e, de mãos dadas, dançaram com eles, e os cutucaram, e lhes fizeram cócegas e deram gargalhadas, e cheiraram seus cabelos sem, contudo, fazer qualquer sermão religioso.
Por isso mesmo, quando mais pessoas amigas estão juntas, todas sabem o que é o pão trançado, vinho, doces, mel, filhos, filhas, mulheres amáveis e satisfeitas com HaShem, risos, gargalhadas. E os motivos, todos os motivos, de não querermos trabalhar neste dia. Quando estamos juntos, desprezamos discursos e sermões religiosos, porque nossos filhos, mulheres e amigos, valem mais que discursos religiosos ou rezas sem fim.
Entretanto, quando um dos nossos amigos trabalha neste dia, e não podemos vê-lo em nossos encontros, isso não nos aborrece nem encanta. De fato, não mandamos nenhum espia em sua casa, nenhum missionário e, muito menos, um profeta! Não investigamos nosso irmão nem nossa irmã, pois, no Judaísmo cada qual é responsável por si mesmo e, assim como as letras do alfabeto hebraico, cada qual vale por si mesmo, tem seu peso e sua medida (que ninguém procura conhecer, pois é a medida indecifrável de cada um, da individualidade de cada um).
A responsabilidade, em nós, alcança níveis de grandeza e profundidade, de peso e substância, mas ela é individual, singular e intransferível. Desde a tenra idade somos instruídos no comportamento bom, somos ensinados no exemplo de nossos pais e de nossas mães (sim, no Judaísmo conhecemos bem as palavras pai e mãe!).
Aprendemos a fazer, a concretizar, a transformar um tijolo em castelo, uma página em biblioteca e, assim, somos exercitados continuamente ao aprofundamento, ao estudo e à busca pelo saber. De fato, frequentamos mais lojas de livros usados do que restaurantes…
Desenvolvemos, assim, naturalmente, o respeito por aqueles que, eventualmente, sejam nossos mestres, nossos professores. Porém, eles não são nossos guias espirituais, não são nossos pastores nem nos conduzem a lugar algum.
São mestres que nos ensinam a Torá e o Talmud, e que nos incentivam a ensinar a Torá e o Talmud, transformando-nos em mestres e professores, que ensinam a Torá e o Talmud… Eles, os mestres, não são nossos donos e donos de nossas casas, porque o que eles têm nas mãos e nos legam é de tal modo precioso, grandioso e essencial que, por conta disso, exatamente disso, aprendemos que nossa casa é nosso jardim, nosso recanto e uma projeção de nós mesmos. Aprendemos que nossas casas refletem o nosso amor por Jerusalém.
Ah, Jerusalém… Jerusalém é o nosso centro. E dali, aprendemos a olhar o mundo, o universo, o kosmos… Ali, especialmente ali, nos reencontramos como um povo, como seres humanos que venceram a morte, as câmaras de gás e toda sorte de maldades, que suplantaram as dores e renasceram! A cidade de Melech David e de Melech Sh’lomo, a Poesia e a Sabedoria de mãos dadas!
Não, não meu caro, Judaísmo não é solidão. Somos calorosamente sociáveis- e solidários. Judaísmo é silêncio realizador, fogo que queima sem discurso, energia que faz e refaz a nossa alma.
Se quiser andar conosco, poderá vir. Sim, você poderá vir (por que não?). Mas, não pretenda sair pelo mundo, tentando consertá-lo com o Judaísmo, nem voltar-se contra seus antigos pares, incriminando-os, derrotando-os e causando-lhes dissabores. Não faça isso!
Se quiser, venha. Mas, se vier e viver como judeu, você não se fará melhor que seus antigos companheiros, nem poderá lhes dizer coisa alguma.
Apenas apontará para si mesmo (apenas para si mesmo!) um comportamento único, próprio, sobretudo se perceber que nosso D’us é seu D’us e que nosso Povo é seu Povo e, assim, não poderá fazer – nem permitir que se faça aos outros, o que lhe parecer odioso, injusto e indecente a si mesmo.
© Pietro Nardella-Dellova
NOTA:
Texto originalmente publicado no livro A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS E OUTROS MONÓLOGOS. São Paulo: Editora Scortecci, 2009, p 168 e segs., mas escrito em 2008, em Fondi, Itália, a partir de um diálogo com um jovem professor.