Tempus edax rerum (O tempo, esse devorador das coisas), Ovídio

Sábado passado tive uma prova de que ainda estou vivo. Nunca se sabe, não é mesmo? Depois de dois anos de afastamento forçado pela peste, nosso grupo de amigos voltou a se encontrar aqui em casa. Antes do dilúvio, a gente sempre se reunia uma vez por mês, cada um trazendo um pequeno texto, que era lido e comentado por todos. Terminada a leitura, o prazer do encontro esticava em torno da mesa. Conversa correndo solta, nutrida por vinhos, pastas e afetos.

Dessa vez, havia não apenas a emoção do reencontro. Que bom termos sobrevivido ao vírus e ao negacionismo criminoso da gangue planaltina! Tivemos que lidar com um reservatório lotado de assuntos adiados. Sabe aquela vontade impossível de esgotar tudo que se acumulou, de uma carreira só? Depois de vários solavancos, conversamos sobre o tempo. Não aquele que nosso ranking poderia sugerir. O dos cigarros Caporal Amarellinho, tipo arrebenta-peito, da cerveja Cascatinha, “de propriedades vitaminosas”, das sessões corridas no Cineac. Tampouco aquele que minha neta querida lascou, com certa desconfiança. Sabia, vovô, que daqui a 8 bilhões de anos o Sol vai desaparecer e engolir a Terra? Não sou capaz de prever o que vai acontecer daqui a oito minutos, que dirá essa pilha de zeros. Mais modestos, ficamos no tempo que nos coube viver e nos sinais, alguns bem nítidos, do que vem por aí.

Difícil de definir, arroz de festa nos delírios da ficção científica, o tempo não é uma variável linear. Vivemos passado, presente e futuro simultaneamente. O passado, com seus valores e ambiências, por exemplo, é teimoso. Nos Estados Unidos, há uma guerra cultural em curso. Não, não estou me referindo aos sacripantas que rejeitam vacinas. Falo das ameaças de morte que estão sofrendo membros de conselhos escolares, por defenderem um currículo moderno, laico e pluralista. Os brucutus, assustados com o que não conseguem entender e dominar, rotulam os pedagogos de “marxistas”, “pedófilos” e “traidores”. Falta muito pouco para convocarem fogueiras e linchamentos. Em alguns distritos, já estão censurando livros. É Idade Média que chama?

Em certas religiões, o domínio patriarcal permanece coeso. Quem consegue imaginar a eleição de uma mulher para papa? A simples sugestão deve abalar as cúpulas vaticanas. Na frente do Muro das Lamentações, em Jerusalém, os judeus ultraortodoxos travam batalha para impedir que as mulheres leiam rolos da Torá no local. Leitura monopolizada pelos homens. Julgam-se ultrajados pela “subversão” dos papéis definidos, segundo eles, por deus. Xingam e tentam agredir as mulheres que ousam desafiar o arcaísmo. Religiões são, em geral, versões embalsamadas de passados remotos. Há uma frase de Sto. Tomás de Aquino, se me permitem a heresia de citá-lo, de que gosto particularmente: Temo o homem de um livro só. Podem anotar: os que vivem brandindo este livro são inegociáveis fanáticos. Apóstolos do passado.

O futuro se insinua, cada vez mais rapidamente, todos os dias. Às vezes, com inquietante desumanização. Na semana do meu reencontro com os amigos, os jornais noticiaram a demissão, comunicada por zoom, de 900 funcionários da empresa Better.com. Até mesmo o bilhete azul está virando virtual. O metaverso, com seus avatares e promessas de jogos hiper-realistas, já tem investimentos anuais previstos em US$ 1 trilhão. Pode chegar o dia em que pessoas prefiram viver, ou passar a maior parte do tempo, num universo paralelo. Experiências com “camundongos Frankenstein” abrem caminho para o impensável: a identificação de genes que nos fazem humanos. O passo seguinte tende a ser a criação de animais com algumas características humanas. Perto deste tipo de experiência, as reformas da Natureza que a Emília propunha eram inocentes joguetes da imaginação. Lembram? Ela queria, por exemplo, que as tetas das vacas viessem com duas torneiras. Uma, para as embalagens dos leiteiros. A outra, para amamentar os bezerros. Ora, já temos a Vaca que Ri, a Vaca Louca. O que faríamos com uma vaca que jogasse xadrez, orientasse teses de doutorado, fosse toda elegante a um restaurante e lá, sorriso esnobe, pedisse risoto de escargots com lascas de trufas negras?

A despedida veio cheia de promessas dos amigos de que nos veremos em breve. Com ou sem algoritmos, o humano que está em nós resiste. Tempo de saudade.

Um abraço. E coragem.