Desde que se nasce até a morte o desapego está presente. O primeiro desapego é o nascimento. A gente estava dormindo num lugar bem quentinho na primeira casa-paraíso. De repente, vai sendo empurrado, passa por um canal e já entra no mundo chorando. Aliás, convém chorar forte para revelar saúde, capacidade respiratória. O primeiro desapego gera dores, o ar expandindo os pulmões. A história do ser humano pode ser contada pelas suas perdas, pelos seus desapegos, pois só aí a gente cresce. Depois dos primeiros colos o bebê vai ao chão, senta e depois começa a engatinhar e por fim caminhar. Dá um passo e cai, dá dois, e depois volta a cair. Quantas vezes numa vida a gente cai, e é uma luta e tanto para se levantar.
O desapego de uma casa, de uma escola, de amizades, de amores, das árvores da rua, tudo isso gera tristezas. Vivi há cinquenta anos o desapego de um exilado, um exílio que busquei ao ir viver em outro país. Depois dos primeiros meses de festa e alegria, comecei a sentir saudades do passado, das casas conhecidas, das árvores conhecidas, enfim, fiquei entristecido. Impossível esquecer um sábado à noite em que só escutei tangos e tomei vinho recordando as amizades, alguma namorada, o conforto de uma vida de classe média. Não sabia que estava fazendo o mestrado em desapego, e só anos e anos depois me abriram as portas de um doutorado que nunca completei. Nunca serei professor de desapegos, sou um aluno, e por isso escrevi no título aprendendo, pois o desapego vai até o fim da vida. A morte será o último desapego, e até lá a gente ainda pode perder gente essencial, e então se sente medo. Desapego é um desafio e, as vezes, não ocorre e aí se geram apegos sofridos e humilhantes.
Até hoje recordo as frases de despedida de um profeta, poeta, cantor e “payador” argentino, Atahualpa Yupanqui, num “show” em 1979 aqui em Porto Alegre. Disse: “Toda separación duele, y quienes no piense asi que se separe”. É sabido o quanto a gente aprende nas separações. São esses tempos de crise que o mundo muda, que se muda a forma de ver a vida. Viva as metamorfoses, pois são as transformações que enriquecem com novos pontos de vista, e abrem as portas de novos espetáculos.
Há uns vinte anos me pus a escrever e vi que não seria escritor, mas podia aprender a me comunicar. Foi um duro aprendizado que não se conclui, pois as palavras a gente não doma. Elas são caprichosas, e avanço aqui com prudência, pois volta e meio me perco, mas são elas que uso para conversar aqui.
Um dos aprendizados do desapego é diminuir o peso da existência, pois a leveza faz muito bem, daí a insustentável leveza do ser. Aliás, os artistas são mestres da leveza. Foi com eles que aprendi o quanto é preciso aprender a ver a vida não tanto como um peso insuportável, um peso que afunda, aplasta, enterra. Reagir diante do peso, do terror, com as danças, as músicas, alegrias, como fizeram negras e negros na escravidão. É um espanto como, após doze, quatorze horas de trabalho escravo, tinham forças para brincar, e assim marcaram nossa cultura, a vida de cada brasileiro. Agora há um anúncio de uma mudança:
“Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro”
Os armados na História mais destruíram que construíram: mataram em Palmares, Canudos, Contestado, ditadura militar, agora, castigam os negros e índios. Os negros foram a mão de obra de tudo, inventaram a capoeira, o canto, e os índios defenderam a natureza. Todos maltratados, desprezados e mortos até hoje. Portanto, ao lado dos desapegos pessoais que todos precisam para crescer, tem os desapegos culturais.
É urgente que possamos contar uma nova história de quem foram os verdadeiros construtores do Brasil. Paulo Freire e as cotas criticadas para negros, índios e pobres foi só um começo de justiça histórica em nosso país. Vai tardar, mas haverá de se criar um país de verdade com mais justiça.