Ficou muito espantada quando viu Moishe Nudnik naquele lugar. A última vez que haviam se encontrado tinha sido numa banca de verduras e legumes, na Makow de seus afetos. Tantos quilômetros depois e lá estavam, sob um sol saariano, na feira da Felisberto de Menezes, conversando sobre cebolas e lembranças. Ela procurava beterrabas, fazia muito que não preparava o borsht ancestral, joia de seu artesanato culinário. Moishe caprichou na escolha. Embrulhadas as raízes, tirou de um caixote meio escondido um molho de azedinhas, a schav da Polônia natal, dava um ótimo borsht branco. Presente do conterrâneo. Zai guezunt, despediram-se.

Alguns passos adiante e lá estava a barraca do seu Pilópides, que morava pelas bandas da rua Rigenti Fijon. Dentro de caixas gradeadas, amontoavam-se galinhas que não paravam de se bicar e agitar as asas inúteis. Pareciam intuir o triste fado que as esperava. Qual está mais gorda? Aquela ali é especial, chegou ontem de um sítio em Varre-sai. Produto de primeira, pode levar. Habituada à lábia amanteigada do feirante, olhou meio de lado, mas acabou enfiando a penosa na sacola de pano, já pensando na trabalheira de degolar, depenar, queimar os restos de penas.

Na cozinha modesta, transformava-se. Deixava de ser a coadjuvante na vida familiar para executar uma sinfonia de aromas e sabores de meter inveja nos alquimistas. Movimento único: allegro vivace. Da finada galinha do seu Pilópides, condensava uma gordura sólida, o shmaltz, que derretia no pão quente e, garanto, produzia efeito, digamos, lisérgico. Da bípede cacarejante derivava ainda um caldo fumegante, dourado, o yuach, base para delícias variadas ao longo do ano. Bastava adicionar um ovo cru no caldo acolhedor quando este levantasse fervura, ou kneidlach, bolinhos de farinha de matzá, óleo e ovos, para garantir refeições definitivas. Tudo numa época em que o colesterol, longe de ser o espectro que hoje nos assombra, era apenas uma rima para o Almanaque Capivarol.

Das beterrabas, extraía o suco vermelho-paixão, ingrediente chave para o borsht, que o Menino se habituou a tomar gelado. Um tantinho de creme de leite azedo para quebrar a doçura. Mal sabia ele o poder daquele líquido ficar tatuado na memória afetiva de um tempo simples, mas dadivoso, no meio de muitas carências. No roteiro do filme, destacava-se um velho provérbio ídish: Als quen der mentsch farguesn nor nit esn. Pode-se esquecer de tudo, menos de comer.

Outro dia, o Gregorio Duvivier lamentou que sua infância não tivesse cheiro do forno a lenha de sua avó. Tinha mais a ver, disse o Greg, com gosto de gordura vegetal hidrogenada. A minha, posso dizer, teve uma mistura. Vidas espartanas geram prazeres contidos. Sobraram os aromas das bisnagas quentes que o padeiro trazia de bicicleta numa cesta de vime. Hoje, estes pães compridos ganharam grife, são “baguettes”, andam de nariz empinado, com chauffeur particular. Sabor de Gordura de Coco Carioca não faz ninguém ter saudade. Nas raras extravagâncias, chupava-se uma bala Toffee, comia-se um cigarrinho de chocolate Pan, um Ki-Bamba da Kibon ou um pacotinho de coco de rato (quem, por todos os santos!, teve a genial ideia de colocar este nome numa guloseima?). Os aromas vieram quase todos nas festas judaicas e no caldo de cana da confeitaria tijucana. Cheiro de cana moída gruda nas ideias.

A gente costuma dizer que não tem como competir com um sabor parido na cozinha, mas originado em relações memoráveis. O borsht da minha avó materna é um exemplo. Aqui no Rio, o mais próximo, jamais igual, que se chegou dele foi o servido pelo restaurante A Polonesa. Pois este último vestígio acaba de desaparecer. Domingo passado, com filas doloridas que se estenderam do meio-dia à meia-noite, ele fechou as portas. Foi tudo muito estranho. No dia seguinte, as mesas vestiram escuro, o letreiro sumiu, os ruídos de pratos e talheres se tornaram a porta que range, a corrente que se arrasta pelo chão, o espelho que reflete imagens autônomas. Como farei para evocar o borsht imbatível?

Em meio ao espanto da finitude, resta o recurso da imaginação. Chamo Guimarães Rosa para ornamentar este sentimento e dar esperança. Na estória Nada e a nossa condição (Primeiras estórias, editora Nova Fronteira), uma filha conversa com o pai: “Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá para a gente algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança? E ele, com muito caso, no devagar da resposta, suave a voz: Faz de conta, minha filha… Faz de conta…”.

Um abraço. E coragem.