Imaginar é voar, dar asas as fantasias, ou quando chove dentro da alta fantasia, mas também é trazer o ontem para o hoje e aí pensar o amanhã. Portanto, trarei hoje os tempos distantes de 1966, quando a cantora Nara Leão foi ameaçada de prisão e apoiada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. Trazer a coragem e a solidariedade como vagalumes nessa longa noite que irá amanhecer.
Em uma entrevista ao jornal “Diário de Notícias”, a jovem Nara Leão posicionou-se frontalmente contra o golpe militar de 1964: “Os militares podem entender de canhão ou de metralhadora, mas não pescam nada de política”. Ela pregou a volta do poder às mãos dos civis e até mesmo a extinção do Exército, arriscando-se assim a ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Antecipando-se à sua possível prisão, Drummond publicou o poema “Apelo”.
“Meu honrado marechal
Dirigente da nação
Venho fazer-lhe um apelo
Não prenda Nara Leão
Soube que a Guerra, por conta,
Lhe quer dar uma lição. Vai enquadrá-la
– esta é forte –
Artigo tal… não sei não
A menina disse coisas
De causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
Abala a revolução?
Nara quis separar
O civil do capitão
Em nossa ordem social
Lançar desagregação?
Será que ela tem na fala,
Mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
Em vez de Nara, é leão?
Se o general Costa e Silva,
Já nosso meio-chefão
Tem pinta de boa praça,
Porque tal irritação?
Ou foi alguém que, do contra,
Quis criar amolação
A seu
Artur, inventando
Este caso sem razão?
Que disse a mocinha, enfim,
De inspirado pelo cão?
Que é pela paz e amor
E contra a destruição?
E, depois, se não há preso,
Político na ocasião,
Por que fazer da menina
Uma única exceção?
Ah, marechal, compre um disco
De Nara, tão doce, tão
Meigamente brasileira,
E remeta ao escalão;
Ao ouvir o que ela canta
E penetra o coração,
O que é música de embalo
Em meio a tanta aflição.
O gabinete zangado
Que fez um tarantantão,
Denunciando Narinha,
Mudava de opinião.
De música precisamos
Para pegar o rojão,
Para viver e sorrir,
Que não está mole não.
Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
Para a voz que pelos ares,
Espalha sua canção.
Meu ilustre general,
Dirigente da nação,
Não deixe, nem de brinquedo,
Que prendam Nara Leão”. (C.D.A.)
Drummond fez seu apelo com graça na defesa da querida artista, ele decidiu se posicionar a favor da arte ameaçada pelos militares. Recuperou naquele momento sua promessa escrita em seu poema “Mãos Dadas”:
“Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças….Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas….O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.
Uma longa entrevista feita duas semanas antes da morte do poeta foi publicada no livro Dossiê Drummond do jornalista Geneton Moraes Neto. E no prefácio do livro Paulo Francis escreveu que é a melhor entrevista de todas que leu sobre Drummond. Algumas de suas frases: “Fui mais poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético”. O poeta ao ver ameaçada uma cantora fez um apelo em defesa do Brasil, em defesa da liberdade e deu as mãos ao que lutavam contra a ditadura com seu humor elegante.
Escrevo sobre Nara e Drummond para matar as saudades de artistas que souberam se posicionar contra o poder opressor. Trazê-los de ontem para hoje é manter suas mensagens vivas. As palavras da cantora e do poeta dão o que pensar ao desafiarem os armados de ontem, que hoje voltaram ao ataque à democracia e contra a segurança nacional (como fazem na Amazônia e na saúde). Imaginar é trazer o ontem para o hoje, e assim ter a potência para construir, mais uma vez, outro amanhã