As motivações humanas (do outro) para o bem e para o mal são sempre difíceis de aceitar e mais ainda de desembrulhar (Roberto DaMatta)

Certa vez, Albert Einstein ligou para seu amigo Sholem Asch, celebrado escritor em língua ídish, nascido na Polônia e radicado em New York desde 1915. Sholem, preciso de ti. Quero gravar uma mensagem para os judeus alemães, pedindo que todos saiam imediatamente do país. Corria o ano de 1939 e os acontecimentos na Alemanha justificavam a apreensão de Einstein. O amigo se prontificou a ajudá-lo.

Terminada a ligação, Sholem Asch coçou a cabeça, sem saber como fazer a gravação. Lembrou-se de seu filho Moses, que trabalhava com equipamentos de som. Fez contato com ele, explicou a situação e perguntou se tinha um gravador que pudesse transportar para Princeton. Moses disse que dava para arranjar um e colocar no carro. Partiram, então, ao encontro de Einstein.

Tudo correu sem problemas. Gravação feita, foram os três jantar. Simpático, Einstein puxou conversa com Moses. E então, você é escritor como seu pai? Não, disse-lhe Moses, trabalho com som e ando pensando em criar uma gravadora. Tenho vontade de registrar o som humano em todas as suas dimensões. Quero dar espaço especialmente para a cultura popular, essa que as gravadoras convencionais desprezam por não serem “comerciais”. Einstein suspirou profundamente e comentou: Você está certo, os americanos não apreciam sua própria cultura. Seria necessário alguém de fora, como você, judeu polonês, para que eles percebam o que estão perdendo.

Moses, ou Moe, como passou a ser conhecido no meio fonográfico, levou a sério sua intenção. Depois de uma primeira experiência fracassada, criou, em 1948, a Folkways Records, fantástica usina descobridora de talentos e desbravadora de um espaço praticamente virgem. Moe ofereceu, generosamente, sua estrutura para o lançamento de ilustres desconhecidos, muitos dos quais viraram referência para a música popular. Ao morrer, em 1986, deixou um arquivo com 2.168 discos, que iam de Woody Guthrie, Pete Seeger e Lead Belly a músicos que lutaram em causas operárias, feministas, de direitos civis e pacifistas. Registrou canções de indígenas norte-americanos e melodias ancestrais de povos africanos. Ouvinte voraz, apaixonado pelos sons ao redor, não hesitou em gravar, em 1957, o disco “Sons dos sapos norte-americanos”. Bom que se diga que algumas das espécies destes animais estão hoje ameaçadas de extinção. Não satisfeito em ostentar ignorância, o Homem veste a roupa de Anjo Exterminador da natureza.

O comentário de Einstein sobre o desprezo pelo que está perto, ao lado, em benefício do que está, mesmo metaforicamente, distante, coçou minhas ideias. Claro que logo associei com as Querelas do Brasil, parceria do Maurício Tapajós com o Aldir Blanc. Lembram? O Brazil não conhece o Brasil/O Brasil nunca foi ao Brazil. Um pouco na linha do complexo de vira-latas rodrigueano. O que vem de fora, ou é influenciado pela tradição forânea, é melhor. A radicalização no sentido contrário tem um exemplo desconcertante na chamada Marcha contra a Guitarra Elétrica, em julho de 1967. Artistas foram às ruas para criticar a influência da guitarra na MPB. Na primeira fila, caramba!, estavam Elis Regina, Jair Rodrigues, Zé Keti, Gilberto Gil, Edu Lobo, o MPB-4. Luditas nas partituras. Queriam banir o instrumento da criação musical. Interessante que Gil, meses depois, lançou Domingo no parque, clássico instantâneo, acompanhado pelas guitarras dos Mutantes. Elis gravaria, em 1976, outro clássico: Como nossos pais, do Belchior. A guitarra pesada que a acompanha é parte indissociável da interpretação antológica.  Prefiro o diálogo entre culturas. Conversa que fez Caetano Veloso participar da trilha sonora do documentário sobre o dançarino e coreógrafo israelense Ohad Naharin. Intercâmbio que fez grandes músicos brasileiros absorverem, transformando-a e enriquecendo-a, a influência do jazz. Perde quem se isola.

É no terreno pessoal que a porca torce o rabo. Reconhecer o outro como interlocutor necessário não é tarefa trivial. Basta ver aonde leva o clima de polarização que corrói as entranhas brasileiras. Diferenças são cada vez menos toleradas, deslizam não raro para rigidez ou ruptura. Sobra pouco espaço para conhecer, de verdade, quem está do outro lado do rio. Uma pequena história ilustra isso. Henfil cansou de açoitar quem identificava como inimigos. Colocou-os num Cemitério dos Mortos-vivos, administrado pelo Cabôco Mamadô. Mandou Elis Regina e Clarice Lispector, entre outros, para a lista negra. Em 1985, se disse arrependido por ter “enterrado” as duas. Perguntaram a Clarice o que falaria para o Henfil caso o encontrasse. Ao invés de reclamar da injustiça, diria: “Olha, quando você escrever sobre mim, Clarice não é com dois esses, é com c, viu?”. O recado foi claro: antes de me condenar, procure saber quem sou. O inferno, aí digo eu, nem sempre são os outros.

Um abraço. E coragem.