Será que me enganei?
Outrora se reconhecia um judeu pela sua capacidade infinita de se questionar, de responder sistematicamente com uma pergunta, abrindo caminho a novas questões, e viver angustiado pela ânsia de não chegar a respostas definitivas. Éramos insatisfeitos, porém a busca, estimulante.
A cena do magistral filme dos Monty Phyton “A Vida de Bryan” mostrando os estudiosos do Talmude decidindo a culpabilidade de um pobre bêbado condenado à crucifixão, como se fosse Jesus de Nazaré, o Messias, ilustra com o sabor do humor britânico essa característica judaica. Embora sabendo da inocência de Bryan, impossível chegar a uma sentença, pois há sempre alguma pergunta sem resposta. Costumava-se dizer: um judeu, duas, três opiniões.
Vivi na própria pele as questões onipresentes: Por que sou judeu? e O que é ser judeu?
Essas duas indagações nos perseguiram ao longo do tempo. Num círculo vicioso, cada resposta levou a uma nova dúvida e assim sucessivamente. Aliás, foi provavelmente esse traço que levou tantos judeus, ao longo da história, a se projetar no mundo.
No entanto, a impressão que tenho hoje é de que muitos perderam a capacidade de se interrogar, passando a engolir os mais absolutos absurdos e até mesmo a propagá-los.
No Brasil, com seus cerca de 160 mil judeus, isso é patente.
Surpreendeu-me, no mau sentido da palavra, o fato de que uma parte da comunidade ajudou a eleger Jair Bolsonaro. Foi-me difícil admitir que muitos votaram num fascista, cujos valores sempre foram diametralmente opostos aos valores judaicos.
Questionei-me:
Como dar de ombros quando um sujeito afirma que seu herói é um torturador? Como dar de ombros quando alguém se propõe a matar seus adversários? Como dar de ombros quando alguém trata uma mulher, sua própria filha, como um ser inferior? Como dar de ombros quando os negros são tratados como animais? Como dar de ombros quando alguém prefere a morte de seu filho gay? Como aplaudir quem é contra a igualdade de oportunidades? Como dar de ombros quando alguém ataca a educação? Como dar de ombros quando alguém não reconhece a ciência? Como dar de ombros a falas discriminatórias? Como dar de ombros quando alguém mente e se desmente a cada dia, várias vezes por dia? Como dar de ombros quando alguém tem a petulância do desrespeito e aversão à liberdade?
Como judeu agnóstico, eu me questionei sobre cada um desses aspectos da personalidade e do caráter do candidato. Você não? Por que?
Tudo isso nós sabíamos antes de 2018: você, eu, o rabino, o ashkenazi, o sefarade, os laicos, os agnósticos, os ateus. A diferença é que muitos judeus não agiram como judeus, optando por não se questionar. Votaram no fascista ou anularam o voto, permitindo assim sua eleição.
Em nome do que? De interesses pessoais para uns, do ódio pelo outro candidato para outros, de cegueira para terceiros.
Por que não se informaram e se questionaram como fizeram no passado? Por preguiça intelectual?
E por que a triste realidade de 610 mil mortos, centenas de milhares dos quais poderiam ter sido salvos se não fosse o negacionismo, não levaram esses judeus a rever suas posições?
Por que não se preocupam com o aumento de atos nazifascistas?
Nos últimos dois anos, no Brasil, o número de células neonazistas cresceu 60%, para chegar a 530.
Nada a ver com Bolsonaro? Será?
– Em 1998, Bolsonaro elogiou Hitler, disse que “soube impor ordem e disciplina” e defendeu estudantes que elegeram o Fuhrer como “personalidade histórica mais admirada”.
– Em 2004, Bolsonaro enviou carta de agradecimento a sites neonazistas: “Vocês são a razão de existência do meu mandato”.
– Em entrevista, Bolsonaro disse que Hitler era “admirável”, “um grande estrategista” e mentiu que seu avô lutou como soldado na guerra a favor de Hitler.
– Em 2011, grupo de neonazistas saiu às ruas em defesa do capitão.
– Nas redes sociais, Bolsonaro postou um selfie com um sósia de Hitler, convidado pelo seu filho para discursar na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.
– “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Bolsonaro usou em campanha eleitoral o slogan copiado ao da Alemanha nazista.
– Em 2019, em evento com evangélicos e rememorando sua visita a Israel, o presidente disse, sobre o Holocausto, que “Podemos perdoar, mas não esquecer.”
– Durante uma live presidencial, Bolsonaro tomou leite, em alusão ao símbolo dos supremacistas brancos da Alt Right, grupo neonazista norte-americano.
– “Melhor viver um dia como leão do que cem anos como cordeiro” era o bordão de Mussolini, o líder fascista da Itália, repetido em outra live.
– Ao tomar posse, o secretário de cultura de Bolsonaro interpretou o papel de Joseph Goebbels, copiou texto e fotografia do braço direito de Hitler, em discurso pronunciado ao som de Wagner, o compositor preferido do fuhrer.
– O secretário da Comunicação, judeu, usou a frase do portão de Auschwitz para ilustrar sua fala.
– Em 2021, Bolsonaro se reuniu com a neta do ministro das finanças de Hitler, a neonazista xenófoba Beatrix von Storch.
– Há poucos dias, um bolsonarista propôs, na Jovem Pan, que o Brasil matasse judeus para enriquecer, como fez a Alemanha nazista.
Ah sim, é tempo de não esquecer que o guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, é um notório e assumido antissemita.
Eu, como judeu agnóstico, não paro de me questionar: – Como é possível ser judeu e apoiar essa espécie de Anticristo?
Por mais incrível que possa parecer, é possível.
Como assim?
Eu conheço um judeu que trabalha com a memória do Holocausto e que se declara disposto a repetir seu voto no revisionista. Outro cuja fortuna aumentou graças às benesses do poder. Outro que é ortodoxo, conhece todas as rezas de cor e aplaude o racismo bolsonarista. Outros ainda que apesar de serem líderes comunitários (até eles) são próximos do poder nazifascista e silenciam diante do antissemitismo e da discriminação de terceiros, como se o assassinato em massa dos nossos índios por exemplo, não valesse a dos judeus.
Fecham os olhos para não ver, a boca para não protestar e o nariz para não sentir o fedor que exala do esgoto palaciano.
Como pode?; eu me pergunto. Você não? Onde andam os seus, os nossos valores de solidariedade, de justiça social, de humanismo? Onde andam os tais pontos de interrogação que nos levavam à razão?
Antes que você me acuse de comunista, socialista ou qualquer outro ista, saiba que não tenho carteirinha de nenhum partido, sou “apenas” um jornalista, um judeu que se questiona e que ama a democracia, o Estado de Direito e os Direitos Humanos.
Até ontem, acreditei que os valores universais coincidiam com os nossos valores judaicos; será que me enganei? Sem dúvida.
Ou será que o engano foi seu?