Na tela, uma cena famosa do filme The gold rush, de 1925. Charlie Chaplin, isolado numa cabana e desesperado de fome, cozinha a velha botina. Tira o calçado fumegante da panela e vai, lentamente, comendo a sola, enrolando o cadarço no garfo qual espaguete, chupando os pregos como restos de fino galeto. A plateia do cinema está dividida em três níveis. No superior, dos endinheirados, ri-se à tripa forra. No do meio, ocupado pelos remediados, há um sorriso titubeante, quase preocupado, constrangido. No inferior, da gente pobre, roupa puída, rostos magros, olhos cansados, a atmosfera é fúnebre. Carlitos, para eles, rodara não uma ficção, mas um documentário de suas rotinas tristes.
Não inventei esse quadro. É do Quino, pai da Mafalda e artista gráfico de gênio. Em poucos traços, escancara a obscena desigualdade de tantas sociedades. Julho último, uma imensa fila na porta de um açougue em Cuiabá chamou a atenção. Pessoas que enfrentavam calor de derreter viaduto para conseguir ossos com resíduos de carne. As imagens abriram a porteira. Outras, de várias partes do país, mostraram gente disputando ossos em caçambas. Sem qualquer surpresa, a “mão invisível do mercado” descobriu uma oportunidade. Açougues passaram a vender ossos, o preço chegou a R$ 4/kg. É possível ornamentar esse inferno com números. No Brasil, cerca de 112 milhões de pessoas vivem em estado de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave). Entre elas o rendimento real per capita proveniente do trabalho caiu perto de 30% nos últimos 7 anos. Isso quer dizer que todo o país vai mal, em crise profunda? Não.
Uma rede paulista de lojas para animais domésticos acaba de abrir duas filiais no Rio. Oferecem produtos de luxo para bichinhos privilegiados. Sorvetes (um deles, sabor bacon), bolos de caneca, muffins, molhos gourmet para ração, patês, café, cervejas (!) e petiscos personalizados. O mercado brasileiro de produtos de luxo foi o que menos sofreu na pandemia. A Cartier, por exemplo, quase quintuplicou suas vendas em 2020 em relação a 2019. Se madame quiser consumir peças de luxo usadas, pode comprar uma bolsa Birkin, da Hermès, por uma pechincha: R$ 35 mil. Se optar por uma Chanel clássica, pagará módicos R$ 20 mil. É para essa turma que o tchutchuca, freguês de paraísos ficais, flexiona a espinha. É essa a elite que constrói muros e arrota privilégios, aglomerou em bares da moda desde o início da pandemia, ofendeu fiscais que tentavam evitar aglomerações (lembram-se da mulher que, num bar na Barra da Tijuca, enfiou o dedo no nariz de um fiscal e disse sobre o marido que a acompanhava: “Ele não é cidadão não, é engenheiro civil, formado, melhor do que você”?), tem o verdadeiro poder neste país. Não foi isso que uma conversa do banqueiro André Esteves com clientes desnudou? O boquirroto pintou-se como oráculo dos poderes da República. Adornou a bravata rotulando o golpe de 1964 como “acontecimento pacífico”. Torce claramente pela reeleição do tresloucado ignorante. Burguesia ilimitada. Sem máscara, sem fantasia.
Enquanto prossegue a farra-do-fraque, a grande federação dos explorados pisa em brasas. O total de favelas dobrou no Brasil em dez anos. A taxa de desocupação da metade mais pobre do país mais do que dobrou desde 2014. 27,4 milhões de brasileiros vivem hoje com menos de R$ 261 ao mês, maior taxa de miseráveis em uma década. Os trabalhos por conta própria já representam quase um terço de toda a população ocupada. Em dois terços dos acordos coletivos de trabalho, o reajuste salarial perdeu da inflação.
Em 1965, um concerto aconteceu no Royal Variety, em Londres. Lá estavam os Beatles, jovenzinhos, cantando musiquinhas com letras inocentes. Presente na plateia, a família real britânica. Antes do último número, John Lennon se dirigiu ao público. “Vamos precisar da participação de vocês. Os que estão sentados nos lugares mais baratos, batam palmas. Os dos lugares mais caros, chacoalhem suas joias”. Risos amarelos nas primeiras filas. Lennon já tinha a semente do Working class hero que comporia cinco anos depois. Até quando a exploração maciça da maioria da população continuará? Até quando os ricos e seus serviçais continuarão chacoalhando as joias sobre um mar de cadáveres, miséria e terra arrasada? Até quando o working class hero continuará sendo apenas something to be, um projeto em construção? O que a esquerda tem a apresentar como alternativa à catástrofe que torna 1% da população mundial proprietária de 82% da riqueza produzida pela humanidade? São possíveis soluções cosméticas, protelatórias, dentro de um modo de produção material e simbólica que se assenta, obrigatoriamente, na desigualdade?
Que os explorados, humilhados e ofendidos tomem posse do seu processo de emancipação. Em 1968, Paul McCartney leu nos jornais sobre a luta dos negros norte-americanos contra a discriminação racial. Escreveu, então, Blackbird. Diz no trecho final: Blackbird singing in the dead of night/Take these broken wings and learn to fly/All your life/You were only waiting for this moment to arise. No século XIX, um certo barbudo alemão disse a mesma coisa com outras palavras. Não perdeu a atualidade.
Abraço. E coragem.