Neste 6 de Setembro de 2021, após o entardecer, as mesas postas com toalhas perfumadas, adornadas de pães e pratos especiais, doces, vinho, maçãs, mel e afeto; a luz da vela será acesa por uma mulher consciente e empoderada do (e no) seu papel no processo de humanização, iluminando os rostinhos das crianças ávidas pela doçura de uma vida plena de alegria, paz e felicidade, e as faces dos anciãos marcadas de uma esperança que se renova a cada ciclo.
Todos cantam, todos se abraçam no abraço humano, feito de calor e amizade, força e vida e todos ouvem o gemido do Shofar. É Rosh Hashaná, o “Capodanno Ebraico” do Novo Ano Judaico de 5782!
Mas, ainda que comemorado apenas (ou especialmente) entre Judeus, não é apenas uma Festa Judaica. É uma Festa da humanidade! Uma Festa em que se comemora o “dia” (oportunidade) em que a Alma do Universo olhou um (ou um monte) estranho ser na terra, nas regiões horizontais, nos vazios mesopotâmicos (ou africanos), um ser apavorado com os ruídos bestiais e com a escuridão noturna, escondido nos buracos em que se protegia dos uivos macabros, da densidade e das sombras, e o tomou pelas mãos…
Neste dia, a Ruach haElohim, o elemento feminino das Forças da Cr(e)ação, o tomou pelas mãos e o colocou em pé, olhou nos seus olhos esbugalhados, nos seus lábios cortados e aproximou-se dele, beijando-o nas faces e soprando sobre ele aquele fogo de vida (semelhante ao de Prometeu Acorrentado). E, assim, do encontro dessas forças da “Cr(e)ação” com o estranho ser, e do beijo e do perfume do vento, surgiu Adam – a Humanidade, feita de pó e sangue, de fogo e vida, de medo e coragem, de fome e inteligência, de emoção e criatividade. Desse encontro surgiu “ish-ishá”, a Humanidade com suas faces masculina e feminina, com a força e com a poesia, com a guerra e com a música, com seu “itzer hatov e ietzer hará“, isto é, suas inclinações para o bem e para o mal, como, aliás, funcionam as forças da natureza.
E seus olhos se abriram para enxergar, e seus ouvidos para escutar e, erguendo-se, forte e vertical – ereto, suplantou o medo, venceu as bestas, transpôs obstáculos e foi dando nomes para tudo, porque tudo era seu – e era de tudo. E cavou buracos no chão para fazer germinar a semente. Ali estava ela, a Humanidade, criadora da beleza, porque são os olhos dela que criam a beleza, não os olhos das Forças da Cr(e)ação. Ali estava ela, criando parâmetros de convivência, e relacionamentos, de busca, de sexualidade, de vigor, de dança, poesia, música, prazer, porque ela cria…
E o masculino (ish) e e feminino (ishá) desta Humanidade se olharam e inventaram brincadeiras, e descobriram que seus corpos se cobriam com um tecido finíssimo de pele humana, capaz de responder ao toque, ao beijo, ao sopro. E eles se olharam e viram que suas pupilas se dilatavam quanto mais se olhavam e que seus lábios se abriam quanto mais se tocavam. E o feminino (ishá) tomou o masculino (ish) pela mão e, cantando, o ensinou a ser gente, o ensinou a descobrir segredos, a experimentar, a beijar, a sentir perfumes diversos, a se mover… Agora era Adam (terra e sangue). E Adam abriu a sua boca para criar poesia intensa, chamando-a Havá (mãe da vida).
Foi o primeiro Rosh Hashaná, o dia em que a Humanidade começou (eu disse: começou) a ser a imagem e a semelhança dos Elohim, das Forças da Cr(e)ação e, desde então, a humanidade deixou de rosnar para cantar. Desde então, deixou de fugir para enfrentar. E deixou de se esconder para misturar-se. E trocou a simples cópula, instintiva, pelas expressões de amor, ternura e gozo criativo, para se envolver num manto de intensidade, fogo e vida. Foi em Rosh Hashaná que a humanidade se espelhou na Forças da Cr(e)ação!
Shaná Tová uMetuká (Um bom e doce Ano Novo)!
© Pietro Nardella-Dellova
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Texto escrito, originalmente, no Rosh Hashaná de 5762, e reaproveitado neste, de 5782.