Salvo melhor juízo, o primeiro texto (ou um dois primeiríssimos) em Língua Portuguesa, defendendo o Casamento entre pessoas do mesmo sexo foi de minha autoria (publiquei-o em um Jornal paulista com o título “Do Casamento entre Homossexuais ou, da União entre Pessoas“. O texto, escrito em 1999, foi publicado em 2000. Nele, defendia o direito das pessoas se unirem, em nome do Afeto, considerando não poder haver discriminação de qualquer natureza!
Mesmo tendo reservas em relação ao Ato Jurídico (cartorário) Casamento para qualquer pessoa, de qualquer orientação sexual, considerei que o Casamento ou a União Estável entre Pessoas do mesmo sexo eram necessários a fim de tutelar juridicamente tais e quais relações. Esse reconhecimento, veio, depois, pouco a pouco, via Jurisprudencial, e firmou-se no STF mais de dez anos depois daquele referido texto.
Era difícil falar sobre isso nas Aulas de Direito Civil, mas eu falava! Os alunos e alunas tinham um problema qualquer (o problema não estava nos gays e lésbicas, mas nos que se consideravam “moralmente superiores”). Eu dizia, sempre, em Aula: “Se você vir duas pessoas do mesmo sexo se beijando ali no corredor, isso interessa a você em que sentido? E se não interessa, porque recrimina?”. À pergunta seguia-se sempre o silêncio dos asnos matriculados! Havia asnos, muitos asnos, também na Sala dos Professores!
Hoje, após 22 anos (22 anos!!!!) daquele texto, e mais de uma década da Decisão do STF, além de tudo mais, ainda continuo encontrando asnos matriculados, asnos docentes, asnos homofóbicos, asnos bíblicos, asnos reprimidos, asnos neopentecostais, asnos e mais asnos, enfim, gente de baixíssimo valor humanista, nenhuma dignidade afetiva, nenhuma inteligência e nenhum valor ético. Moralistas babacas!
No que respeita ao Ensino Jurídico, o meu Direito Civil foi, e é, sempre, e, sobretudo, Constitucional. Não reconheço qualquer outro modo de ensinar o Direito Civil que não seja em chave constitucional. E quando ensino Direito das Famílias, tenho, de um lado, a Constituição, e de outro, o conceito pleno e libertário de Afeto. Não ensino um Direito Civil que colabore com a burguesia tosca, rasa e exploradora, nem um Direito das Famílias que contribua com a opressão religiosa e moralista. Penso que um dia, ao olhar para trás, não sentirei vergonha de mim mesmo nem da minha ação docente por todo o período em que atuo!
Mas, o tema continua em maus espaços de discussão. E mantém-se a pergunta: o que é Família? É muita coisa (e pode ser muita coisa), menos o que a “comissão especial” (da Câmara dos Deputados) definiu, faz alguns anos, no Projeto de Lei n. 6583/2013 (Estatuto da Família).
Aliás, como eu já disse em outra ocasião, especialmente, em Entrevista para o Programa de Rádio, no Paraná (vide texto “Congresso Conservador Ameaça Direitos Conquistados“), o “parecer” da Comissão é um atraso, por si só, em relação ao Direito e, em especial, aos Núcleos Familiares. É um retrocesso ao século XIX. É atraso, muito atraso. Eis um dos retrógrados Artigos do Projeto de Lei n. 6583/2013, aprovado pela Comissão:
Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Obviamente a definição da dita Comissão sequer pode prosperar (no processo legislativo), por várias razões socioeconômicas, mas, por duas legais, tanto de caráter constitucional quanto infraconstitucional, respectivamente, Artigo 5º, XXXVI da CF/88 e Artigo 6º da LINDB (apenas para citar os dispositivos mais expressivos):
A Lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Pois bem, já está decidido pelo STF e, portanto, é “coisa julgada”, a união entre pessoas do mesmo sexo como Núcleo familiar (desprezado, agora, pela comissão parlamentar e pelo Projeto de Lei n. 6583/2013). Qualquer nova lei não pode repercutir sobre este fato (social e jurídico). É coisa julgada e, mais, estabelecida no Direito que, não entenderam os parlamentares, não pode ser modificada. Não se tiram direitos!
Além disso, o “projeto” passado pela Comissão não contempla outras famílias, como as recompostas, famílias afetivas (por exemplo, filhos de criação), uniões plúrimas, entre irmãos e, ainda, de uma pessoa só, com visíveis impactos, se aprovado o parecer da comissão, sobre o patrimônio, especialmente, no que respeita à Usucapião e Impenhorabilidade do Bem de Família. Cito apenas o mais básico na ordem patrimonial. Há mais, muito mais, pelo ângulo Previdenciário, Trabalhista, Tributário, Civil, Processual Civil, Penal, Processual Penal, entre outros e, repetindo, Constitucional!
Por outro lado, a “comissão” quer alterar (ou atentar contra) o texto da Constituição? Sim, pois sequer a CF/88, em seu Artigo 226, definiu que “família seja núcleo formado pela união entre homem e mulher”, aliás, nem casamento aparece na Constituição como “união entre homem e mulher”. O Constituinte de 1987 nem mesmo definiu família (e agiu bem, pois a ideia é aberta).
Poderia a lei modificar a Constituição? Na cabeça dos mais retrógrados parlamentares, sim, já que desconhecem a Carta Magna! Porém, a CF/88 tratou, acertadamente, a família como base da sociedade (Art. 226), pois é mesmo, sem dispor de como pode ser formada ou arranjada, já que o mencionado Artigo é aberto e já foi objeto de profunda hermenêutica pelo STF, especialmente no que concerne ao alcance de tantas possibilidades.
Família é um setor com o qual o legislador não deveria se (pre)ocupar, pois não se trata de matéria legal (ou que possa ser quadrificada pela lei), mas, ao contrário, para além do alcance legislativo, trata-se de relações de afeto de caráter horizontal e plural. Quando muito, o legislador deve se ocupar com questões patrimoniais, a fim de garantir que os bens sejam protegidos. Não pode o legislador estrangular os Núcleos familiares definindo “família”!
Saberia o legislador (e sua comissão) o que é “domus”? Saberia o legislador o que é “famulus” (palavra que designa a origem patrimonial da família entre os romanos)? Saberia o legislador o que é família eclesiástica (medieval)? Saberia o legislador o que é família proletária? Saberia o legislador o que é família afetiva? Não! O legislador brasil(eiro) nada sabe disso ou daquilo, apenas quer estabelecer no país seus dogmas “religiosos”, “equivocados” e “inconstitucionais”.
Enfim, o desvario parlamentar (que parece não ter fim naquela – e nessa, legislatura) anda fazendo estragos no Direito. Por quê? Porque lê o Direito como capítulos e versículos, mas o Direito poucas vezes é “capítulo”, aliás, poucas vezes é lei. E nunca, nunca mesmo, é versículo!
Isso me fez lembrar uma situação acadêmica já antiga, do final dos anos 90.
Duas alunas foram “flagradas” se beijando (beijo de língua!) no corredor de uma Universidade administrada por uma ordem católica. O reitor, um franciscano, achou por bem me nomear para compor a “sindicância”, porque, segundo ele, sendo eu Judeu e, à época ter um Mestrado em Ciência da Religião (que não é Teologia!), assim como ser Professor de Direito Civil, poderia elaborar um parecer com fundamentos bíblicos e jurídicos, que embasasse sua decisão de expulsar as duas Alunas.
Acabei por fazer um parecer defendendo as Alunas e seu direito ao beijo! Claramente, o Reitor estava erradíssimo e bastante irritado (quem sabe, excitado!). Na reunião para apresentar meu parecer, após sua leitura, o Reitor não o compreendeu, aliás, não o aceitou, dizendo-se “frustrado” comigo. Respondi:
“O que Vossa “Eminência” não está entendendo, ainda, é que não há nada na Bíblia, de qualquer língua e credo, que autorize a expulsão destas alunas Lésbicas; não há nada, nem mesmo uma palavra, contra Lésbicas e sua Homossexualidade, mas, há, sim, todas contra o Vosso “Santo” Celibato e, mais ainda, contra a Vossa “Santa” Castidade”
As meninas não foram expulsas, mas pouco tempo depois perdi minhas aulas de Direito.
Enfim, só para não nos esquecermos, a questão sexual nunca foi um problema judaico. Nunca houve, por exemplo, um Judeu, adulto, celibatário ou que tivesse algum problema com relação sexual. Ao contrário, houve sim, Judeus formados em Shir HaShirim (Cântico dos Cânticos de Salomão), expressão literária do amor pleno e do prazer entre duas pessoas.
Não houve qualquer celibatário, e sequer o conceito de celibato foi debatido entre Judeus, pois isso é estranho à cultura judaica, aliás, ofensivo às primeiras palavras-princípio (Mitzvot). Muito diversamente do que se pensa, e se ensina, ao longo dos séculos, o amor e as relações sexuais entre pessoas, foram expressões caracteristicamente judaicas.
Mesmo aqueles “grandes” Judeus, muitos dos quais, Mestres, a quem, falsamente, se atribui algum celibato (não foram celibatários!), tiveram relações amorosas e sexuais, ao menos com duas ou três pessoas!
A questão sexual apresentou-se como problema apenas depois de Agostinho e Constantino (e para o grupo acorrentado a Agostinho e a Constantino) e todas as variações medievais, modernas e contemporâneas, ligadas a Agostinho, Constantino, Lutero e tais. Mesmo assim, nada tem a ver com o Judaísmo, pois o Judaísmo nada tem a ver com Agostinho, Constantino, Lutero ou suas variações e variáveis. Definitivamente, não existe essa coisa de cultura “judaico-cristã” ou uma “moral” cristã de base judaica sobre a vida sexual, sexualidade e orientação sexual!
© Pietro Nardella-Dellova