Um dos aspectos tratados nos grandes temas da Ciência da Religião (que não é Teologia) é o Ateísmo. Tema especialmente interessante para “Direitos Humanos” (e eu nem estou dizendo que sou ateu!). Porque entre as facetas judaicas, há aquela de matriz cultural (registro que é hoje a mais expressiva). Essa matriz cultural defende a tese de que o judaísmo não é uma religião, mas uma cultura no estrito sendo de compreensão. É nessa dimensão que o Judaísmo pode contribuir decisivamente para a tessitura dos Direitos Humanos.

Ao contrário do que se pode imaginar, o ateísmo é um tema recorrente nos grandes debates judaicos, sobremodo nos ciclos judaicos anarquistas (especialmente estadunidense) (Bertolo: 2001). Aliás, não poucas vezes, é tratado como forma de resistência ao processo opressor de teologização de qualquer religião pregacional. Dizer-se ateu ou, como sugere o tema, estar em movimento de ateísmo (a-theos) é tido não poucas vezes como sinônimo de irreligioso e, pior, de ataque ao sentimento religioso ou às religiões.

Porém, seguimos aqui o conceito de ateu/ateísmo como movimento de resistência, e não de ataque ao direito religioso de quaisquer pessoas. No caso judaico, é relevante notar que os kibutzim judaicos que existem desde 1870 (chamados, após 1948, de kibutzim israelenses), foram todos anarquistas, marxistas e, em sua grande maioria, ateus (Bulgarelli: 1964). Menciono, a título de ilustração, que um dos livros da Literatura Judaica, chamado Ester, cujo texto narra a história de uma rainha (de origem judaica) que livrou o povo judeu de ser morto pelos assírios (hoje, Irã), não menciona uma única vez a palavra “Deus” ou qualquer termo que possa sugerir “Deus”. É desse Judaísmo ético, cultural, libertário, proativo, que tratamos aqui.

De fato, há um processo de centrífuga unidimensional no que respeita à religião, (digamos, pregacional, salvífica, apocalíptica, milenarista ou até messiânica), em especial aquelas que querem a uniformização do mundo. Trata-se da imposição unilateral de um viés religioso que vai, entre outros aspectos, tomando a sociedade como um todo, e desenhando as relações econômicas e jurídicas.

Afinal, por que chamo o ateísmo de resistência? Pelas mesmas razões que chamo o anarquismo de resistência e, em sua vasta temática, há a da luta contínua contra os processos de imposição ou contextualização religiosa da sociedade. Ateísmo e, também, Anarquismo, não têm a ver com desrespeito às crenças e, muito menos, com desorganização, caos, bagunça. Atacar religiões e agir de modo caótico não têm nada de ateísmo e de anarquismo, mas de crimes comuns. Insisto, Ateísmo e Anarquismo são formas de resistência e, sobretudo, de dizer “não!” às imposições coletivizantes, uniformizadoras, coisificantes, padronizadoras e destruidoras do direito individual e da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana começa sendo o direito de ser diferente!

Historicamente falando, há inúmeros exemplos de imposição religiosa com nefastas repercussões na vida individual e social. Por exemplo, a justificativa católica da escravidão ou, em outro setor, a imposição de regime matrimonial aprovado pela Igreja contra as relações de afeto. No primeiro caso, da escravidão, milhões de negros foram feitos e mantidos como escravos, como coisas, com a legitimação que a leitura (perversa e erradíssima) da Bíblia (cristã) lhe dava, em especial o episódio de Noé (embriagado) e de seu filho Ham (Cam), então amaldiçoado por seu pai. No outro exemplo, o regime de casamento como “sacramento” que deve ser observado por casais católicos levou a uma das maiores injustiças: a marginalização e criminalização das relações amorosas livres. Criou-se o concubinato no sentido negativo! A criminalização do amor criou gerações de milhares e milhões de pessoas sem direito ao nome, herança e dignidade.

Mas, se em um regime político em que a religião é relevante, digo, determinante para o regramento social e jurídico, por outro lado, em sociedades emancipadas, vale dizer, democráticas, cuja lei maior, a Constituição, e sua opção por Estado Democrático de Direito, bem como a separação entre religião e organização social, deveria ser, não apenas nítida, mas visivelmente nítida. É a falha da Constituição Federal brasil(eira), cuja proposta é de um Estado laico, mas não tanto. Vejamos o preâmbulo da CF/88:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Note-se que no preâmbulo, o constituinte, ao promulgar o texto, invoca “Deus”. Não diz qual é o “deus”, que tipo de “deus”. Não diz se é Tupã, Jeová, Alá, entre outros. Além da falha em invocar “deus”, apresenta-se uma pior e terrível falha, ou seja, a de que o “deus” que aparece na Constituição é o “deus” de todos e para todos. Ou seja, todos devem conhecê-lo, até mesmo os ateus. A CF/88 é laica, é democrática e é plural, mas, com o preâmbulo em leve desafinação, não abriu espaço para os ateus.

Na mesma linha falha, o símbolo “crucifixo” encontra-se afixado na parede de vários ambientes públicos, sabidamente, a de fundo do STF – Supremo Tribunal Federal. Outra vez é uma imposição: todos devem prestar reverência não apenas à religião, mas, sobretudo, à religião católica, cujo símbolo maior é mesmo o crucifixo.

Uma das abordagens que faço é acerca do direito do ateu ser ateu e, não apenas de ser ateu, mas ser respeitado e protegido como ateu. A CF/88 protege o direito aos cultos, crenças, lugares de culto etc. Porém, não trata do direito de uma pessoa em nada acreditar e, além disso, de não ser molestado por não acreditar.  E por que aponto isso? Porque o Judaísmo, enquanto cultura, tem algo a oferecer acerca disso, pois não há qualquer obrigação judaica em acreditar em um “deus”. Diga-se mais, sequer a palavra “deus” aparece nos textos da Literatura judaica antiga, mas a ideia (plural) de Elohim.

A questão nesse sentido não é apenas ser ateu, mas viver o ateísmo com a proteção constitucional, em especial, o direito à diversidade, pluralidade e dignidade da pessoa humana. Ademais, ateus e religiosos são fundamentais para uma sociedade livre, igualitária e solidária, além de plural, como quer o texto constitucional.

O ateu foi colocado em um canto discriminatório e, não poucas vezes, vítima de preconceito que lhe retira ou destrói um dos fundamentos constitucionais: a dignidade da pessoa humana. Ser ateu, para o senso comum teologizado e preconceituoso, é sinônimo de desonestidade, imoralidade, fraqueza, leviandade, porque a religião (pregacional) e o discurso religioso se encarregam de, não apenas criar, mas reforçar tais e quais preconceitos reais.

O processo de emancipação passa, necessariamente, pela compreensão do pluralismo não apenas religioso, mas o de ausência religiosa. Se é verdade que toda prática religiosa deve ser protegida, e creio que deva mesmo, não é  menos verdade que a não prática religiosa, aliás, muito mais que não pratica, mas assumir-se ateu, ou em um movimento de ateísmo, exigem a mesma proteção constitucional. Perguntamos: ser ateu não faz parte do elemento sine qua non do pluralismo cultural e diversidade de comportamentos?

Por último, vale dizer que a religião leva à construção de uma ordem moral (mores, no latim), equivocadamente exigida de todos. Mas, o que interessa mesmo, se falarmos em sociedades democráticas, é a ética (ethos, no grego). Moral interessa a uma pessoa ou, no máximo, ao seu pequeno grupo, enquanto ética interessa a todos. A moral, então, tem uma raiz na religião e em seu braço teológico, e deles se alimenta, enquanto a ética tem raiz na racionalidade, na cultura plural, na diversidade, na filosofia crítica e, sobretudo, no anarquismo epistemológico (enquanto uma teoria crítica e libertária). A ética, da qual faz parte o ateísmo, alimenta-se de criticidade, humanismo, solidariedade, respeito, igualdade, liberdade e racionalidade.

© Pietro Nardella-Dellova 

Nota: Texto apresentado e debatido no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da PUC/SP, 2017

INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA:

 BERTOLO, Amedeo et al. L’anarchico e l’ebreo: Storia di un Incontro. Traduzione di Amedeo Bertolo, Annalisa Bertolo. Milano: Eleuthera, 2001;

BULGARELLI, Waldirio. O Kibutz e a Entidade Cooperativa. SP: Depto Assistência ao Cooperativismo da Secretaria  da Agricultura do Estado de São Paulo, 1964;