Não precisa ser um anti-heroi muito inusitado para estar saindo da cama às 5 e uns palitos da madrugada para trabalhar. Pasme, que tem um bocado de profissionais formados e estatisticamente de classe média que o fazem rotineiramente. Há professores, aqueles unsung heroes da invisibilidade do cotidiano, que apenas com morar a mais de quarenta minutos do local de trabalho e sem carro, estão tomando o café da manhã enquanto eu digito aqui chupando chimarrão. Sei bem disso, pois meus dois primeiros anos na metrópole foram de levantar às 5:15 e sair de casa meia hora mais tarde, andar quase meia hora entre sem-tetos na calçada e pegar o busão na República para Vila Sônia. E eu não saio da média muito mais do que você que está lendo a uma hora mais razoável no aconchego caseiro da pandemia.
O que diferencia a gente de anti-herois e anti-vilões é a tenacidade falta de jeito para a façanha cotidiana. Ah, sim, senhora! Anti-vilões, aka o governo que temos, seus eleitores e seus ainda defensores e passadores de pano diversos, exibem a rara capacidade de destruir lógica e vida em proporções similares sem propor-se a fazê-lo de praxe.
São os Camargos da vida (tanto o Sérgio como o Zezé), que com ações, omissões e opiniões soterram a verdade e a justiça a cada trapalhada; os Neymares e Fulanos da vida, respectivamente com e sem nome, que em similares proporções carecem de consciência de classe e origem e invariavelmente passam pano para seus verdugos. Tantos!
E tem também os anti-figurantes. Eu particularmente venho me deliciando em reverso com estes de há algum tempo a esta parte. Defensores de uma democracia apenas formal, como aqueles orgulhosos centristas que confundem centro com equilíbrio e imparcialidade. Alto-falantes do combate à polarização. Doadores de espaço e tempo para a dúvida razoável sobre a ineficácia da hidroxicloroquina. Propagadores onanísticos de emojis de gratidão burguesa no deck do Titanic Tupiniquim. Saboreio-me o beiço envenenado.
Brandir a dignidade humana não deveria ser o inusitado, mesdames et messieurs, mas sim apenas o exercício da nossa humanidade concretizada; quanto mais nós que vivemos cheios de mordomias. E ainda assim, calamos sob clichês midiáticos, ficamos satisfeitos com migalhas de reclamações padronizadas, dormimos tranquilamente aquecidos de delegação apartidária terceirizada.
O sabor da falta de ação cidadã libertária concreta amarga cada entardecer de quem vos escreve.