Cartão postal do Brasil. Uma mulher pobre, mãe de cinco filhos, pobre, dependente química, pobre, desesperada e pobre rouba uma C*c* Cola, suco em pó e miojo para levar para casa. Ela é presa, indiciada e encarcerada. Pede-se então que ela permaneça em liberdade aguardando julgamento. Isto seria em si uma medida lógica, em se considerando que ela tem filhos pequenos para cuidar. Ainda, invoca-se decisão que permitiu liberdade para Claudia Ancelmo ao se alegar que ela, rica, organizada, rica, com um exército de subalternos, rica, cheia de advogados, rica, midiática, independente cínica e rica, tinha um filho menor e precisava estar em casa para exercer suas tarefas de mãe [?]. O desembargador Farto (não é uma piada pronta?!) resolveu não conceder a liberdade à pobre, pois ela é reincidente – ela já tinha roubado comida e produtos de limpeza.
Se não fosse aviltante ao ponto que é, caberia até uma discussão de por que uma pessoa rouba, por que refrigerante e o diabo a motoneta de quatro tempos. Mas é o Brasil, na América Latrina, onde tudo se pode e onde não há impossíveis.
Um conhecido, renomado acadêmico e professor de direito, com vasta trajetória e ainda maior ação democrática, parabeniza católicos em ocasião de mais um aniversário e festejo da Nossa Senhora Aparecida. Ele, judeu, comemora a fé e celebra a beleza da data. Chegam comentários admonitórios nas suas redes, de mãos de evangélicos, repreendendo-o por ter co-comemorado data. Mais um cartão postal do Brasil teocrático de uma via só.
O que estamos fazendo todos nós aqui, lendo e escrevendo sem fazermos nada mais que revirar os olhos e soltar fogo pelas vendas?
O País está sendo desmantelado, desmatado, desumanizado como nunca antes em “democracia”. Quem aqui nasceu e cresceu, e tem idade para relatar mais de um regime, pode corroborar. Isto é, se não tiver sido cooptado, captado, ou simplesmente nunca educado civicamente. E são tantos e tantos milhões! De que adianta ter uma das maiores populações, territórios e riquezas do planeta, para acabar como massa de manobra de genocidas hoje e sociopatas sempre?
Enquanto isso, devo insistir, na tépida luz da nossa formação e sob o aconchegante edredom na nossa cama confortável no nosso quarto isolado nas nossas residências com serviços em dia, reviramos os olhos e descemos o dedinho na tela. É isto o que somos chamados a resolver? É, por acaso, digno do nosso privilégio agirmos com tamanha conivência? Ora, que sei que a maioria dos leitores é branca, educada, urbana, central e bem empregada; não perdoemos de praxe nossa fraqueza e falta de engajamento. Que judaísmo é esse que não levanta a cabeça, que não estende a mão? Que humanismo me vendem que não peita a ruindade de cada minuto? Que educação libertária que não se reproduz como premissa?
Dormimos sob os louros colhidos de termos achado um leitmotiv que nos define, porém, ao mesmo tempo desengaja: Resistência Democrática.
Esta resistência deveria nos tornar exploradores e criadores de uma re-existência, de uma reassistência, de uma re-insistência. Mas não: ao invés disto, operamos feitos claque partidária de uma ação que não nos é própria, iludindo-nos que alguém a está desenvolvendo. Envergonhemo-nos!
Já que somos tão freirianos, freudianos, paisanos, e nos declamamos humanos, tenhamos um módico de pragmatismo.