Onde queimam livros, acabam queimando homens (Heinrich Heine)
Maple syrup, hóquei, natureza exuberante, Leylah Fernandez. Canadá é tudo de bom, né? Não é bem assim que a banda toca. Há alguns dias, foi tornado público que, em 2019, cerca de 5 mil livros de uma escola canadense foram destruídos por terem sido considerados racistas. Entre os títulos execrados, havia quadrinhos perigosíssimos de Tintim e de Asterix.
Para não ficar atrás na corrida obscurantista, no mesmo ano uma escola de Barcelona recolheu 200 livros de sua biblioteca, por supostamente reproduzirem padrões sexistas. Exemplos ? A bela adormecida e Chapeuzinho vermelho. Não sei o porquê, mas lembrei das pregações cômico-goiabeiras da ministra Damares.
Censura e destruição física de obras literárias não são propriamente novidades. Acho que o malfadado “politicamente correto” e a radicalização das chamadas pautas identitárias apenas adicionaram ferramentas, supostamente legítimas, ao desejo de eliminar textos ou imagens “inadequados”. Jogar livros na fogueira, literal ou metaforicamente, tem muita quilometragem rodada. Da proibição de textos heréticos às perseguições macartistas, da fúria inquisitorial às chamas nazistas, autoridades de coturno variado proibiram a inteligência de circular. Como disse o jornalista Bruno Molinero, “a censura (…) é uma vontade incontrolável de decidir o que os outros devem ler e impedir a circulação daquilo que nos é estranho ou que ponha em xeque o status quo”.
O Menino viveu uma época em que os gibis eram considerados uma ameaça ao hábito de ler. Diziam os doutos especialistas que eles incentivavam a preguiça. Ora, senhores, não era nada disso. As revistas abriam portas, combinavam o prazer de descobrir as palavras com a estética de gênios como Lee Falk, Alex Raymond e Al Capp. Ah, mas os conteúdos… Aqui entramos no terreno dogmático dos candidatos a censor. Verdade que o Fantasma, o Espírito-que-anda, era uma representação da superioridade dos colonizadores sobre populações nativas. Os pigmeus da tribo Bandar adoravam o mascarado como a um deus. Isso, no entanto, são meus olhos de adulto. Lê-lo na infância não me tornou um abominável racista, insensível à dominação branca na África ou na Ásia. Há mediações entre a leitura e a absorção de conteúdos. Adultos podem, e devem, conversar com os menores sobre o que leem e assistem. Isso dá muito trabalho, se chama educação e passa pelo diálogo, não pela censura ou pela destruição física de livros, jornais e revistas.
Filmes, pinturas e músicas também entram na dança macabra. Em 1937, os nazistas exibiram em Munique o que chamaram de arte degenerada. O objetivo era “pedagógico”: mostrar obras que não se enquadravam no padrão estético oficial e mostravam a face “doentia” que o Reich pretendia exterminar. Lá estavam, por exemplo, Emil Nolde, Käthe Kollwitz, Ernst Barlach. Oitenta e dois anos depois, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella mandou recolher uma revista que reproduzia um beijo gay. Os mastins hitleristas e o sobrinho de Edir Macedo têm muito em comum. Não é raro temer aquilo que não se compreende. Destruir o objeto do medo torna-se imperativo para essa gente.
Quem foi ao cinema nos anos 50, 60 e 70 se habituou a ver na tela, antes do início do filme, um ofício da DCDP – Divisão de Censura às Diversões Públicas, autorizando a exibição para determinada faixa etária. A gente cresceu achando natural aquele filtro com aparência burocrática (mas de fundo obviamente político). Houve censuras mais sutis, mas não menos intolerantes. No filme O trem da vida, moradores de um shtetl na Europa Oriental se apavoram com as notícias de que os nazistas estavam chegando. Aconselhados pelo louco da aldeia, adaptaram locomotiva e vagões para simular um comboio alemão deportando prisioneiros judeus. Esperavam, com isso, atravessar a fronteira russa e salvar suas peles. A coisa parece que vai funcionar, mas termina tragicamente na última cena. A abordagem quase onírica, nada convencional, dos trens que levavam aos campos de extermínio, foi suficiente para o filme receber críticas de setores da comunidade judaica, inconformados com a heterodoxia do diretor romeno Radu Mihăileanu. Amigos, todos somos democratas em tese, mas na hora do vamos ver, do contato com o diferente, pode emergir o Torquemada que habita nossas sombras.
Além da renúncia a educar, a crescer debatendo, o censor pretende destruir o vínculo com a memória. Essa é a teoria do escritor venezuelano Fernando Báez. Segundo ele, “o livro não é destruído como objeto físico, e sim como vínculo de memória (…) O livro dá consistência à memória humana”. E completa: “Esse vínculo poderoso entre livro e memória faz com que um texto deva ser visto como peça-chave do patrimônio cultural de uma sociedade e, certamente, de toda a humanidade”. Quando se propõe, por exemplo, o banimento de livros infantis do Monteiro Lobato, sem qualquer esforço para localizá-los na época em que foram escritos e ignorando a riqueza literária de seus conteúdos, vejo os archotes queimando, ansiosos para dizimar a minha – e a nossa – memória.
Abraço. E coragem.