Há um fenômeno curioso, descrito no jargão médico como a “lei de Velpeau”, e na visão junguiana como “sincronicidade”, onde coisas de características muito semelhantes e incomuns ocorrem aos pares, ou em trios. Entre ontem e hoje, um claro exemplo deste fenômeno se abateu sobre o Brasil, curiosamente vindo de duas juristas e tratando de coisas distintas mas que compartilham o fundo comum do discurso disruptivo, aquele que se destina a corromper os alicerces das comunicações e dos significados que sustentam a substância abstrata da civilização.

E do que é feita essa substância? Basicamente, do conjunto de relações de confiança. Explico. Quantas vezes você leu ou soube de alguém que observou a queda de uma maçã de sua árvore e iniciou um conjunto de experiências, medidas e formulações teóricas para que se entendesse o fenômeno da queda e as leis da física universal que a determinam? Sabemos apenas de dois episódios, o clássico de Isaac Newton e a vultosa revisão de Einstein, que embora tenha rompido radicalmente com seu antecessor em suas formulações, não causou mudanças práticas nas dimensões em que habitamos como humanos. Em outras palavras, a teoria da gravitação de Newton continua a ser usada na prática do dia a dia, por que é simples e atende às necessidades mundanas.

Assim, ainda que saibamos que a teoria de Newton não é uma explicação válida para o universo das dimensões astronômicas, ela nos abastece plenamente para calcular tudo o que precisamos enquanto humanos terrestres. Temos o conhecimento de tudo isso, e sabemos que podemos confiar, pois é algo amplamente aceito e facilmente verificável, sendo que não temos notícia de que as pessoas ficam observando maçãs caindo e quebrando a cabeça novamente para recriar a teoria ou reverificá-la.

Na minha serara, a prática médica, também valorizamos o conhecimento acumulado pela experiência científica casado com a vivência empírica do dia-a-dia, que constantemente nos informa que as diretrizes da ciência funcionam na prática clínica, de modo que uma boa teoria refletida em bons experimentos cujos resultados são bem conhecidos e facilmente alcançáveis não são cotidianamente reverificados, dado que não se esperam resultados novos com a mera repetição de procedimentos.

Já a prática política, no que tange ao campo da opinião, dos enunciados e das propostas, é hábito saudável que se mantenham no campo dos grandes contratos sociais, entre eles, a Constituição do país, se for o caso de uma república constitucional, ou ao conjunto de valores acumulados pelas jurisprudências e outros códigos. Em síntese, toda sociedade que tem como pretensão a sua evolução, só pode fazê-lo com a confiança nos seus alicerces éticos, morais, científicos, históricos, jurídicos e filosóficos. O emprego de proposições e valores que desarmonizam esses bens abstratos podem sim, em caso de ressonância com algumas estruturas sociais, provocar o solapamento de toda uma sociedade, ou, no mínimo, um trauma grave com enormes perdas humanas, inclusive. Não podemos nos esquecer que todas as catástrofes sociais do século XX – e de outras eras – tiveram como fundamento o domínio das palavras e dos significados. Não se conduz qualquer agrupamento humano sem esse domínio.

Janaína Paschoal e Lindôra Araújo, em um espaço de 24h nos deram uma aula sobre como contribuir para o solapamento das nossas estruturas abstratas que nos mantêm como sociedade. A primeira, em um tweet de hoje, assevera: “Há muitos brasileiros que não concordam com as verdades eleitas pelos formadores de opinião, que são muito fortes, mas não são a maioria! Aliás, penso que o Brasil seja um raro exemplo de país, em que a ditadura é feita pelos que NÃO ganharam a eleição”. A segunda, em parecer exarado pela Procuradoria Geral da República, desincrimina o delinquente da República na sua conduta contumaz de não usar máscaras e promover aglomerações em meio à pandemia de COVID-19, sob a alegação de que “não existe base científica suficientemente robusta que afirme com grande grau de segurança que as máscaras impedem ou diminuem o contágio pelo coronavírus”.

Janaína Paschoal corrompe gravemente e em pouquíssimas palavras, com seu viés patologicamente personalista e autoritário, parte do pressuposto que em uma democracia o eleito pode tudo ao dizer que há uma ditadura dos não eleitos. Nesta formulação sofismática, ela claramente reclama da falta de liberdade dos eleitos imposta por o que ela chama de “não eleitos”, insinuando sutilmente que cada eleição pode (ou deve) fazer de tudo, induzindo o incauto a acreditar que a democracia, regime de instituições estruturadas, estruturantes e estáveis, não é um pressuposto para o exercício de poder por parte de seus eleitos. Quer ela fazer o leitor crer que a vontade do eleito pode facilmente se sobrepor ao conjunto de experiências vividas e praticadas pela sociedade. Assim, chama de “ditadura” o conjunto de forças da sociedade que na realidade são conservadoras, ou seja, as forças que tentam preservar o patrimônio democrático construído até o momento. Aqui jaz um imenso ato corruptor, aquele que pretende através da linguagem sofismática atribuir um valor minoritário, autoritário e individualista a um conjunto que é o que melhor representa o coletivo histórico desenhado por legisladores e cumprido por governantes anteriores, ainda que com qualidades e defeitos que guardam boa distância de danos estruturais graves. O que Janaína nos mostra na realidade é o seu inconformismo com a crítica feita ao seu eleito, que como ela, nutre uma visão peculiar, infantil, paranóica e autoritária de mundo, exibindo pornograficamente a sua estreiteza de visão e sua incapacidade de compreender a nossa Constituição e nossas experiências como nação, dado que não compreende que a Carta Magna é a nossa grande e permanente eleição; que o STF é a instituição que a guarda e que deve ser respeitada; que a ciência é o principal norte de qualquer política pública na nossa civilização, para dizer o mínimo.

Já a Dra. Lindôra, não tão sofisticada em seus métodos e linguagem, ainda que abuse de forma obscena do literalismo na sua compreensão da lei no seu parecer que pretende inocentar um delinquente, (lembrando mesmo o episódio onde o filho de um certo ministro foi absolvido de uma omissão de socorro dado que a vítima morreu no acidente, assim descaracterizando juridicamente a omissão, que só se aplica a vivos!), tenta convencer a sociedade que todo o conhecimento que temos sobre a propagação de vírus respiratórios e suas respectivas medidas de contenção, por mais que secularmente testadas, praticadas, aprovadas e comprovadas, não é válido simplesmente por que ela, com sua douta autoridade de sub-procuradora geral da República, determinou que as informações científicas que temos não são suficientes para caracterizar como infração o seu não uso, ainda que a lei diga o contrário. Em apertada síntese lógica, Lindôra afirmou que a lei é ilegal, tentando justificar sua posição com farta argumentação sofismática e falaciosa.

Tudo isso na mesma semana em que o delinquente da República afirmou que “nossa Constituição é comunista e que isso tem que acabar”, dando a clara impressão de uma ação articulada, o que não seria implausível, dado que estas três pessoas partilham do mesmo projeto de destruição do estado democrático de direito, ardilosamente usando as estruturas constitucionais da República para atingir as suas posições de poder e seus respectivos lugares privilegiadíssimos de fala.

Se há algo a ser aproveitado neste cenário é a compreensão clara dessas mentes doentias, imaturas, deficientes e perversas, eventualmente desonestas (até por que ignoram o significado de honestidade) desfilando agora e à nossa porta, à imagem e semelhança pelo menos simbólica dos desfiles nazistas que adoeceram a sociedade alemã na década de 1930.

As atuais 570.000 mortes e a terra arrasada deixada pela pandemia são indissociáveis desse projeto perverso que infelizmente veio como consequência natural e planejada das manipulações iniciadas já à época do “mensalão” e que se multiplicaram pelo lavajatismo, expressões do moralismo raso que fomenta os projetos fascistas. Caberá aos historiadores, sociólogos, antropólogos e cientistas políticos a tarefa de ligar todos os pontos desse mapa do inferno.