A maior parte está na imaginação (Hitchcock, sobre “Psicose”)

Pensando bem, até que demorou. Descubro que já existe nas rede sociais um tipo de competição que transforma leitores convencionais em atletas das letras. Não se trata de leitores compulsivos, amantes da literatura, mas de pessoas que se submetem a uma espécie de dieta mínima de leitura por dia. É uma corrida contra o relógio. São convocadas maratonas e sprints, em que os envolvidos se comprometem com resultados. A coisa é convocada por booktubers (!) e alguns participantes, sem qualquer preocupação com a assimilação de conteúdos, fazem calendários e contabilizam número de páginas lidas por hora. Ganham likes, ohs! de exclamação de amigos virtuais.

Não sei quanto tempo levará para aparecerem subcelebridades literárias, dessas que preferem postar a viver. A experiência da leitura, que exige sobriedade, manter a mente quieta, sem pressa, navegando nas entrelinhas, vira uma farsa, montada em números ilusórios.

A exigência de performance (o que seria barriga de tanquinho num booktuber?) banaliza a relação de quem escreve com quem lê, uma relação que se constrói diferentemente para cada livro. Logo me ocorrem três autobiografias densas, que li ao longo da vida, trocando de lugar com os biografados e estabelecendo um diálogo rico, exigindo velocidade de jaboti na leitura e frequentes revisitas. O futuro dura muito tempo (Louis Althusser), O ar que me falta (Luiz Schwarcz) e Meus começos e meu fim (Nirlando Beirão), livros de gente grande, não se submetem à cultura leviana dos apressadinhos.

Velocidade e exposição pública avançam no cotidiano. As notícias e os gestos caducam rápido. Quem ainda se lembra, por exemplo, da explosão de um depósito de nitrato de amônio, em Beirute? Aconteceu há menos de um ano, deixou mais de cem mortos e arrasou parte da cidade, que certamente ainda está gravemente ferida. Quanto tempo durará a fama instantânea de uma certa Juliette, que venceu o último BBB? Antes de escalar o elenco das novelas, a Rede Globo verifica o número de seguidores das atrizes nas redes sociais. “Todo mundo é medido pela influência. A indústria está se moldando para isso”, disse uma diretora do grupo Consumoteca.

Anos atrás, fui ao teatro assistir um monólogo com o Pedro Cardoso. O texto, inteligente e engraçadíssimo, pareceu não seduzir uma certa mocinha. Sentada na cadeira da frente, passou boa parte do tempo alheia ao palco, olhando para um espelhinho, ajeitando o cabelo, conferindo a maquiagem, polindo a vaidade. A pergunta óbvia é: para quê estava ali? Comportamento similar ao dos viciados em celular, que não desgrudam do aparelho em lugares públicos, reuniões familiares, cinemas, teatros. Há uma urgência, uma aflição, que neurotizam a vida e criam falsas necessidades.

Fico pensando no que seria uma maratona, por exemplo, de música. Com que estado de espírito uma pessoa poderia enfrentar, olhando no relógio, A paixão segundo São Mateus, as Variações Goldberg e as Suítes para violoncelo, de Bach? Que experiência torta poderia resultar disso? A arte usa métrica diferente dos atletas de internet.

Voltando à literatura. O livro não é apenas uma história contada. Ele mesmo carrega uma história. Quando olho as lombadas dos livros de minha biblioteca, identifico as circunstâncias em que esbarrei neles. Desde a recuperação exaustiva de todos os volumes da coleção infantil do Monteiro Lobato, nas mesmas edições em que os li (na sempre vã tentativa de reviver a infância), ao dia em que tive a nítida impressão de que o poeta argentino Juan Gelman me fez um psiu num sebo e ali encontrei sua poesia completa. Do encontro com os Subterrâneos da liberdade, do Jorge Amado, em época de obscurantismo censório, aos folguedos líricos do Manoel de Barros. Imagina afogar essas trajetórias no tic-tac despersonalizado de um cronômetro!

Tivemos, recentemente, um problema sério com o sinal da Net. Uma caixa escura pilotada por robôs. Durante a encrenca, bateu uma saudade do tempo das válvulas. Aquele em que a imagem da televisão desaparecia e um soco na carcaça de madeira resolvia no ato o problema. Não se trata de um desvario de homem das cavernas. É apenas uma pontinha de nostalgia da vida que corria mais serena, menos exigente de reações instantâneas.

Abraço. E coragem.