A pergunta sobre si cresce diante da solidão na pandemia. E foi na realidade virtual onde se encontram consolos de espelhos que diminuem as incertezas. Na verdade, cada pessoa se conhece e desconhece, entre sonhos e pesadelos. O exemplo do nome próprio revela o quanto a gente se conhece pouco, pois não sabe os desejos inconscientes dos pais na escolha de um nome. À medida que o tempo passa e aumentam as experiências de vida, se percebe que seu “eu” é mutante, complexo, conflitivo nas várias facetas. Na verdade, o EU não é senhor em seus domínios, devido o inconsciente, e aí ocorre um ferimento narcisista, um golpe na autoestima. A busca por quem se é passa por espelhos que oscilam entre a frágil ilusão da plenitude e o vazio.
Um exemplo de espelho hoje é quantas vezes por dia a gente olha o celular como se fosse um Narciso diante do lago. A tela do celular é na pandemia a esperança de ser restaurado naquilo que a gente é, ou sonha ser.
Conta-se que após Narciso morrer o lago que ele tanto olhou sua imagem passou de doce a ter águas salgadas. Então disseram à lagoa que ela chorou muito porque Narciso era tão bonito. A lagoa fica surpresa e pergunta sobre essa beleza e dizem a ela: “Quem poderia saber melhor do que você?”. E a lagoa responde: “Mas eu amava Narciso porque, quando ele se deitava em minhas margens eu via no espelho dos seus olhos a minha beleza refletida”. Narciso amava a imagem dele na lagoa e a lagoa via no espelho dos olhos dele sua beleza. Um depende do outro para se sentir amado, desejado, e por isso o amor é narcisista, mas, felizmente, ocorrem as feridas nesse amor.
Graças as feridas e cicatrizes a gente pode crescer entre ilusões e desilusões. Narciso e o lago se amavam, um se espelhava no outro nessa bela história escrita por Oscar Wilde, que tanto sofreu em sua busca desesperada do outro. Não faltam dependências mortificantes e há ainda os que se sentem dominados pelo dinheiro, “tempo é dinheiro”, ou se jogam em “tudo pelo poder”, num consumo empobrecedor.
Montaigne, no final dos “Ensaios”, no capítulo “Da experiência”, escreveu: “Nossa vida, como a harmonia dos mundos, é composta de elementos contrários e tons variados: doces e estridentes, agudos e surdos, frágeis e graves”. A vida é mutante, complexa, cada pessoa é constituída de pedaços costurados, sendo que há pedaços melhor costurados que outros. Cada pessoa é formada por uma rede de identificações que envolvem os familiares, os educadores. Portanto, de uma forma ou outra, todos perguntam aos espelhos quem é cada um. São diferentes forma de aliviar o desamparo que marca a condição humana e constitui nosso mal-estar.
“Quem sou eu?” é uma pergunta curiosa sobre si, o lugar que se ocupa na vida, no amor de quem se ama, enfim na relação com os demais. E há ainda as encruzilhadas de escolhas que a gente faz quanto aos amigos, os amores românticos, estudo, casamento, trabalho, solidão. A vida transcorre entre alegrias e angústias, o ânimo e o desânimo, um diante dos conflitos: familiares, institucionais e políticos.
Sempre gostei das interrogações, escrevo para responder as perguntas que me faço desde muito cedo na vida. Já entendi que estou ao lado dos que aceitam a complexidade do “eu”, do “nós”, importante para enfrentar os nós da vida. Diante dos nós da nossa solidão, é indispensável manter o humanismo como postura digna e existencial. Desprezar a morte hoje de quase meio milhão de brasileiros é uma expressão da frieza cúmplice da maior das crueldades de nossa história. Por isso uma ode aos humanistas diante um sábado esperançoso, de luto e luta. Enfim, merecemos um poema renascentista:
“Venho não sei de onde/Sou não sei quem/Morro não sei quando/Vou não sei aonde/Espanto-me de ser tão alegre”.