O exercício da memória é um esforço de companhia (valter hugo mãe)
Caro Tomás,
Não nos conhecemos, mas uma coincidência perturbadora nos une. Seu pai, Bruno Covas, acaba de morrer aos 41 anos. Você, navegando na adolescência aos 15 anos, acompanhou a fragilização implacável do pai e estava ao seu lado quando nada mais havia a fazer, a não ser a despedida última. Conheço um pouco do turbilhão emocional que acompanha a luta perdida contra a morte e, acredite, aconteceu comigo na mesma idade que você. Meu pai também morreu com 41 anos.
Numa quarta-feira de cinzas, acordou passando mal. Não chegou vivo à hora do almoço. Foi devorado por um infarto fulminante. Era um homem forte, mas tinha vida sedentária, fumava muito e não conseguia se livrar de uma tensão permanente. Meu susto, Tomás, foi tão grande, quanto o que imagino você sentiu ao perceber que o estado do Bruno não tinha mais volta. Não é nada fácil, ainda mais com 15 anos, vestir luto, sofrer com a ausência, compreender o alcance da perda definitiva. Nesta fase da vida, a gente convive, em porções variadas, com sentimentos de excitação e insegurança.
Ao te ver, aparentemente calmo, no velório do Bruno, lembrei que a sensação de anestesia foi igual comigo. Durante 22 anos, não admiti que o velho já não existia. Não poderíamos mais ir a um Fla-Flu em tarde luminosa no Maraca lotado, ver as diabruras do Dida. Tinham virado memória os passeios no Morris Oxford 1949. O cheiro da loção pós-barba, sinal de intimidade, de proximidade, foi para a névoa fluida das lembranças queridas.
O que vai faltar na tua vida agora, Tomás? Afinal de contas, tivemos ambos uma despedida trágica da infância, marcada pela separação súbita, indesejada, inegociável. As dores que se acumularam neste processo não são dimensionáveis. Mais ainda: a elaboração do que se perdeu não tem prazo para acabar. Depois de 22 anos, tive uma grande erupção vulcânica, que mobilizou todo o corpo e incinerou referências. A rigor, ainda está em andamento.
O que aprendi e te ofereço, não como bálsamo pretensioso, mas como diálogo em meio à dor? À “grande dor das coisas que passaram”, como bem disse Camões. É preciso, se possível, inventar um processo de cura pela memória. Não me refiro à memória factual, que essa tem o mau hábito de ser volátil. Vou na linha do encantamento poético que me ensinou valter hugo mãe. As palavras que não puderam ser ditas podem ser inventadas. Os gestos que ficaram incompletos podem ser concluídos numa história imaginada – mas não menos real.
Certo dia, em missão institucional, visitei o colégio judaico na Tijuca onde estudei até entrar na faculdade. Estava conversando com a diretora, quando ela pediu que esperasse um pouco, tinha algo para me dar. Depois de alguns minutos, voltou com um quadro. Era a fotografia do meu pai, inaugurada na secretaria logo após sua morte. Depois de tantos anos, aquele olhar sereno e triste voltava para mim. Cada vez que quero conversar e chorar com ele, olho para a foto e, juntos, inventamos o que não foi possível construir. Dida renasce, o sorriso fica mais solto, o Morris Oxford ganha potência. Sou capaz de sentir o aroma da loção pós-barba e recupero intimidades.
É isso, Tomás. A final da Libertadores no início deste ano, que você assistiu ao lado do Bruno, pode se repetir muitas vezes na memória inventada. Melhor: o placar ficará a teu critério, certamente com goleadas memoráveis do Santos (espero que livre a cara do Flamengo). Que a elaboração das dores deste momento te levem a muitos encontros com o Bruno. E, em algum momento, você encontre a paz possível.
Com meu abraço afetuoso e solidário.