Não pensem, leitoras e leitores que trata este texto de um fármaco e seus usos terapêuticos. Vamos falar sobre linguística, comunicação e técnicas fascistas. Nesta perspectiva, a cloroquina, bem como suas coirmãs no também metastático “tratamento precoce” vieram a fazer parte da desconstrução de toda a racionalidade da nossa civilização democrática, ainda que esta esteja longe daquela utopia grega. Lembrando-se bem, obviamente, que “tratamento precoce” é um sofisma em si mesmo no caso da COVID-19 pois não há tratamento precoce reconhecido definitivamente pela ciência em uso. O que há é uma falsa panaceia, um charlatanismo precoce. Para ter no título de tratamento, é necessário o reconhecimento científico. Esta é apenas uma das armadilhas do discurso bolsofascista em seu esforço equivalente ao feito pelo nazismo na década de 30, que deformou a língua alemã em velocidade sem precedentes. Há inclusive um grande e célebre livro do linguista Viktor Klemperer sobre a linguagem do III Reich, onde aborda em detalhe histórico e estrutural toda a estratégia nazista de desorganização da linguagem e da ciência, além das artes, costumes e padrões políticos.
O debate em torno da cloroquina tem nela apenas o detalhe. O pano de fundo é uma poderosa e eficaz estratégia de desconstrução da ciência como valor ou como eixo estruturante das políticas de saúde e de outras também, sendo o mais gritante exemplo a demissão de Ricardo Galvão da presidência do INPE no ano passado, quando aquela instituição começou a noticiar a devastação amazônica.
Para qualquer ente civilizado a pandemia de COVID-19 é um verdadeiro flagelo. Para o atual governo brasileiro, uma oportunidade de ouro e muito bem aproveitada para promover a normalização da morte, o genocídio dos pobres, idosos e combalidos, sob uma promoção de “bravura” contra o vírus e em prol da economia e do progresso por estas vias, e também sob a “vontade de Deus”, tida como assertiva do principal slogan de Bolsonaro.
Nesta linha, chega na CPI o momento de senadores da base do governo ostentarem “informações” advindas de dirigentes bolsonaristas relatando em uma folha de papel os dados de cidades e locais onde o “tratamento precoce” foi adotado, e pretensamente bem sucedido, sendo esta comunicação recheada de vontade de convencer o público de que se reveste de verdade científica, afinal, trazem “números” construídos sem qualquer critério, fiscalização, planejamento, revisão e devido tratamento estatístico, revisão e publicação em veículos de prestígio. Sim, o grande objetivo desta estratégia e fazer com que o público acredite que a ciência é construída desta forma, colocando em pé de igualdade um trapo trazido por um prefeito leigo de cidade interiorana e uma informação provida pela Organização Mundial de Saúde ou outros grandes veículos de disseminação de informação qualificada.
Nem seria necessário tanto esforço, e muito menos no foro qualificado da CPI e sua audiência. Pesquisas realizadas pouco antes da CPI já revelaram um perfil político conspiracionista afetando metade da população brasileira, que acredita que o novo coronavírus é criação do governo chinês; 22,5% acreditam que a Terra é plana; 56% acreditam que os hospitais recebem dinheiro para aumentarem artificialmente os números da COVID-19; e que 62% dos brasileiros não confiam na grande mídia e usam outras fontes de informação.
Os números são assustadores e mostram o amplo esgarçamento das redes de confiança que mantêm a sociedade unida e estável. As grandes crenças nos valores científicos e democráticos estão ruindo, dando lugar à cultura do “eu acho”, “eu quero”, em uma crescente identificação da população com o perfil autoritário de liderança semeado longamente na última década através de figuras exóticas que obtiveram exposição exacerbada por essa grande mídia que sem dúvida participou do processo da qual ora é vítima.
Assim, muito mais que um fármaco, a cloroquina é a porta-voz de um complexo movimento de comunicação com a sociedade que tem o objetivo de, sob o apelo de uma doença incomumente contagiosa e letal, impor o modelo de soluções simples baseadas em crenças individuais, contrapondo-se a um modelo de conhecimento (a ciência e seus métodos) que prima pela filtragem rigorosa de todo e qualquer componente ou viés pessoal na construção de suas verdades. Tal movimento, como disse acima, reforça a cultura do individualismo pelo qual os menos favorecidos, carentes de formação cultural e política, identificam-se com o perfil autocrático de Bolsonaro e seus seguidores.