Todo morto tem uma história de vida, tem um grupo familiar, tem vizinhos, tem nome e sobrenome. Portanto, um morto não é um número, como os números que tatuavam nos braços de judeus nos campos de concentração nazista. Reduzir uma pessoa morta a um número é a forma de nos distanciar do morto, desumanizar, ser indiferente à morte. Por isso, não serão esquecidas as frases do taxista carioca Marcio Antônio do Nascimento Silva sobre os mortos pela Covid-19: “Não são números. São pessoas queridas e íntimas”. Essas palavras de dor e de protesto foram ditas no dia 11/6/2020 no Rio de Janeiro. Uma pessoa começou a tirar as cruzes fincadas nas areias da praia de Copacabana e o taxista Marcio foi recolocando uma a uma das cruzes. Tinha perdido seu filho de 25 anos, Hugo Dutra do Nascimento Silva, no dia 18 de abril do ano passado. Estava caminhando na praia quando viu a retirada das cruzes como um desrespeito ao seu filho que morrera. Disse em alto e bom som que iria recolocar as cruzes quantas vezes fossem necessárias.
Foi um ato de protesto do taxista pelo desrespeito aos mortos no qual estava seu filho querido, pai de seu neto Arthur de cinco anos e parceiro de danças. O ato agressivo de tirar as cruzes da homenagem feita por um simpatizante do presidente foi aplaudido por algumas pessoas. Os aplausos ao atacante da homenagem aos mortos foram coerentes com o governo brasileiro, que ignorou os mortos e desprezou a gravidade da pandemia. O taxista Marcio ainda disse: “Meu filho morreu com 25 anos. Ele era saudável. Vocês têm que respeitar a dor das pessoas. O mesmo direito que ele tem de tirar eu tenho de botar” – disse, ao recolocar os objetos. – Tem que respeitar”. Naquele dia, 11/6/2020, eram 41.058 mortos cujas histórias foram interrompidas pela pandemia. Passados dez meses e meio, mais ou menos, o País está com mais de quatrocentas mil vidas interrompidas, quatrocentas mil histórias.
Em agosto do ano passado tínhamos cem mil histórias, em 9/1/2021, duzentas mil histórias, e em 24 de março, trezentas mil. Hoje, dia 29 de abril, às 12h41, o consórcio de veículos de imprensa informa que são quatrocentas mil e vinte e uma pessoas mortas em pouco mais de treze meses. Não devia escrever tantos números, mas eles são assombrosos, e muito mais assombroso é o descaso do Executivo que atacou as vacinas durante todo o ano passado. Espantoso como até hoje o governo federal estimula as aglomerações e despreza as máscaras e é indiferente aos mortos.
Perguntas: as Forças Armadas têm como função a Segurança Nacional, a defesa do povo brasileiro, logo, o que fez diante da maior guerra já enfrentada pelo País? O quanto esse silêncio diante de um governo que ajuda o vírus está coerente com suas funções? E a grande mídia irá um dia pedir desculpas por não ter feito uma real oposição ao presidente? E o Poder Legislativo? E o Judiciário? E nós, e cada um de nós, não estamos todos assustados e devagar? Não tenho hoje respostas, mas tenho perguntas.
Na adolescência comecei a ler sobre a Segunda Guerra Mundial e os campos de extermínio. Perguntava então sobre o que faria naquela época, se lutaria contra o nazismo ou ficaria em silêncio diante o genocídio. E agora é ou não é um genocídio quando não se tomaram as medidas defendidas por infectologistas, cientistas daqui e de todo o mundo contra o vírus? Sobram perguntas, mas por dever de memória é preciso lembrar cada família que teve um ente querido perdido em pouco mais de um ano. Sinto que nosso coração brasileiro está frio, distante da tragédia que ocorre diante dos nossos olhos. Deveria escrever palavras esperançosas, palavras otimistas, mas hoje só consigo perguntar. Talvez esteja me desculpando, mas: até quando só ler e escrever?