“And when the broken hearted people

living in the world agree

There will be an answer, let it be

Fo r though they may be parted

There is still a chance that they will see

There Will be an answer, let it be”

Existe a vaidade necrófila, aquela de quem ostenta a árvore genealógica na parede e borda o brasão da família no pijama e nas roupas de cama. Como tudo na vida tem dois lados, existe também a narração do próprio nascimento. Igualmente ridícula. Se você não é a Sasha ou faz parte da família real britânica, isso tem zero interesse. Mas Narciso baixou e vou na onda.

Tudo que escrevo se relaciona a memórias de um tempo que fica cada vez mais distante. Dia desses, minha filha adolescente estudava sobre o processo de redemocratização do país, Tancredo Neves, eleição de 1989 e seus desdobramentos e por um momento ficou impressionada como eu sabia de tudo aquilo sem olhar o livro. Até que caiu a ficha que a mãe além de idosa e fumante, passou a ser testemunha ocular da história. O que valeu para mim a piadinha que sempre faz com os avós: ”Mãe, como era a emoção de ir para o colégio montada num pterodáctilo?”  Fecha o pano.

Desse dia que por aqui aportei, não está na minha memória, obviamente. Narro o que me foi contado. Vim ao mundo com muita pressa. Ou achava ilusoriamente que a saída do útero era pra cair na Disneylândia ou era o inconsciente trabalhando para eu não nascer sob o signo de Capricórnio. Por conta disso minha mãe passou longas 48 horas em trabalho de parto. Quando viram que a criança não dava trégua, optaram por uma cesariana. Chovia torrencialmente. Só quem viveu nos anos 60/70 no Rio de Janeiro sabe o significado disso. Em janeiro de 1967, por exemplo, Nelson Rodrigues perdeu um irmão, a cunhada, duas sobrinhas e a sogra do irmão no desabamento de um prédio em Laranjeiras. Trezentas pessoas perderam a vida por conta daquele temporal. Então nasci, bem diferente dos meus irmãos. Todos foram bebês robustos, eu pesava pouco mais de dois quilos e só tinha cabeça. Mas a vontade de estrear era tão grande, que tirei dez no apgar. Cheguei literalmente aos berros.

Quando digo que nasci em 1970, mesmo no finalzinho do ano, o comentário geral é: ”Brasil, campeão do mundo!”  A bendita Copa do Pra Frente Brasil. Copa esta que nem cheguei a assistir, estava sendo gestada. O que posso dizer sobre esse ano que inaugurou uma década  é que o Brasil vivia sob uma brutal ditadura militar, e foi com o presidente em exercício, Médici, que ela atingiu sua plenitude. Vivíamos num Estado aparelhado para torturar e matar. Curiosa, fui no acervo de O Globo para ver a notícia mais relevante desse 14 de dezembro. Um juiz do Trabalho, defensor das causas dos desfavorecidos, foi assassinado salvo engano em frente a sua casa, com vários tiros. A matéria alegava que ele fora vítima da violência urbana e que a família não queria falar sobre o assunto. Jornais escreviam ficção. O Vietnã pegava fogo, o mundo passava pela crise do petróleo, o Brasil numa puta recessão e a Câmara aprovando a censura de livros e periódicos. Médici prometia o tal “milagre econômico”  e toda e qualquer pessoa que discordasse das arbitrariedades desse governo era perseguida.

Essa curiosidade sobre “o dia em que apareci no mundo”, citando Ary Barroso, foi movida por uma postagem no facebook, em que num clipe apareciam trechos de músicas icônicas do ano que você nasceu. A minha foi Let It Be. Justamente o último álbum dos Beatles.

Nesse mesmo dia, remexendo no quarto da bagunça, achei por acaso a cópia da minha dissertação de mestrado, de 1996, intitulada: ”A Escravidão Negra em Antônio Vieira”. Detive-me em um capítulo :”O Engenho da Ilusão”. A ideia era falar sobre arquitetura, fé e sonhos. Quem me conhece sabe dos meus rolés aleatórios na escrita, mas que no fim chegam a algum lugar.  Aqui reescrevo um trecho:

God is Dead. Estampada na capa da Times como uma manchete, em grandes letras vermelhas, nos anos sessenta, esta frase traduzia o pessimismo de toda uma geração. As flores não venceram os fuzis, a intolerância germinava nos mais variados cantos do planeta, assumindo formas diversas. Apresentava-se nas ditaduras militares da América Latina, na brutalidade da Guerra do Vietnã, nos campos de trabalho forçados da Sibéria.

A geração que decretava a morte de Deus não era uma geração qualquer. Era a mesma que em escala mundial desafiou a ordem estabelecida, considerada por eles caduca e reacionária. Nunca os jovens ousaram sonhar tão apaixonadamente e mais ainda, nunca acreditaram tanto no poder dos seus sonhos. Os desejos de mudança estavam nos hippies com seu ideal de paz e amor, nos estudantes franceses que arrancavam paralelepípedos do chão das ruas parisienses, para se defenderem das forças policiais, no ato extremo do jovem tcheco na Primavera de Praga, que ateou fogo ao seu próprio corpo a maneira dos monges budistas do Vietnã para protestar contra a Guerra, contra  a falta de liberdade no seu país e por toda a estupidez que ocorria num mundo governado por maiores de trinta anos. Forma de lutas diferentes, mas ideal semelhante. A reformulação do mundo. Este ideal valia mais do que a própria vida e esta era uma questão que ultrapassava as ideologias, era uma questão de fé”.

Não fosse eu mesma ter escrito, lendo hoje, duvidaria que era meu. Não pela escrita em si, mas no que nela contém. Assim que  se deu  o encontro da menina de 25 anos com a mulher de 50. Estranhamento. Hoje me pareceu um tanto quanto pueril e posso citar mil e um defeitos aí, tanto no pensamento quanto na forma. Nesse parágrafo está a admiração de uma guria por uma época que nem chegou a viver. Dividi esse momento com duas pessoas dessa geração, meu pai e o pai de um amigo, figura combativa, do mundo das artes. Copiei esse trecho com a minha letra e gravei um pequeno vídeo.

Esse reencontro da mulher com a moça de 25 anos me despertou riso, críticas (nossa, podia ter escrito melhor), mas me situou no presente. Perdi a crença. A cada volta que o mundo dá me torno mais cínica e desesperançada. Flores jamais venceriam canhões. Já não consigo ver grandeza num jovem atear fogo no próprio corpo por uma causa. O mundo não merece isso. A morte de Janis Joplin e Jimmy Hendrix, justamente em 70, não  tem nada de  romântico. Foram jovens que tinham uma carreira a frente, brilhantes no que faziam, mas que perderam completamente os limites. Ninguém merece morrer aos 27 anos. Hoje sou alguém com mais de trinta. Lá atrás, quando escrevi, nem ouviria o que a Céu de agora acha de tudo isso.

De qualquer forma, ao gravar o vídeo, agradeci a esses representantes daquela geração por influenciarem a menina de longos cabelos encaracolados que escreveu o texto. Ela era cheia de esperanças e tinha um coração cheio de ternura. Aos 25 temos licença poética para sermos ingênuos. Um dia fui assim. E isso é lindo.

Quanto ao mundo de hoje, to de folga dele… Let It Be.