Desde o início a história da vacina SPUTNIK-V é uma coleção de eventos desnecessários que, como já escrevi há muitos meses, desonra as tradições científicas da “Grande Mãe Rússia”. Na largada, Putin fez um precipitadíssimo anúncio ao mundo que após ser testada em 72 voluntários tendo entre eles sua própria filha havia obtido o registro na agência reguladora sanitária de seu governo, algo absolutamente inédito em toda a história da ciência médica. Naquela época, minha crítica rendeu diversos ataques de setores da esquerda que interpretaram meu texto como um ataque à ciência russa e à herança soviética (sim, tem gente que pensa que Putin é de esquerda) quando eu já deixava ali, muito bem consignado, que quem estava atacando a ciência russa era o Putin, e não eu. Não bastasse este mau arranjo, o nome SPUTNIK certamente veio a ressuscitar os mitos da guerra fria, com endereço certo a partir do narcísico mosaico líder russo que transita entre uma figura de czar do velho império e o menos velho Stálin, astuto como as duas figuras.
A vacina SPUTNIK tem perfil no Twitter e vende-se bem, com maravilhosas estatísticas de eficácia e eficiência ainda não muito bem refletidas nas estatísticas de incidência e mortalidade, estáveis há um mês em inabalável média de 9.000 casos/dia e 400 mortes/dia. Anuncia ser capaz de evitar 91,5% das infecções nos vacinados, a mais alta de todas as vacinas até agora (veja gráfico abaixo). Está sendo usada em 60 países fora a Rússia, mas não obteve registro em nenhuma das grandes agências sanitárias da Europa, EUA e da nossa ANVISA, bem como ainda não logrou publicar suas estatísticas em nenhum grande periódico médico ou científico geral.
No Brasil, sua causa já foi judicializada, sendo que a justiça deu prazo terminal de 10 dias que se encerram nesta semana para manifestação da agência, sob pena de pela via judicial autorizar a importação do produto pelos governos estaduais demandantes.
A pergunta que não quer calar: por que o Instituto Gamaleya tem tantas dificuldades em fornecer os dados em quantidade e qualidade para que as agências reguladoras endossem o seu produto? Ou, se não há esta dificuldade, por que não vemos uma manifestação pública daquela instituição no sentido de defender-se de uma eventual acusação de falha no envio das informações necessárias? Esta novela parece não ter fim, e infelizmente, gera desgaste e desconfiança desnecessários em qualquer cenário, especialmente o atual.
De minha parte, não tenho qualquer razão para desconfiar da vacina SPUTNIK-V em si mesma. A Rússia não é um país fechado a ponto de impermeabilizar informações importantes sobre eventuais problemas ou fracasso da vacina, e da mesma forma, até onde sabemos os países que estão utilizando-a não apresentaram qualquer reclamação até o momento.
Sob o ponto de vista técnico, a SPUTNIK-V é uma vacina de vírus vetor, um adenovírus não infectante humano, diferente da Oxford-AstraZeneca que usa adenovírus símio e também semelhante à vacina da Janssen neste quesito. Logo, nada tem de excepcional e não haveria razão para que não se confiasse nela a princípio.
O assunto é importante, pois o mundo, e em especial o Brasil, sofre no momento de carência grave de vacinas com uma perspectiva ruim até o fim do ano, pelo menos. Esperamos que alguém dê uma explicação razoável para todo esse imbrólio.
PS (retistrado em 23/10/2021): A Rússia vive no momento uma explosão da pandemia, com participação de uma variante local, segundo se informa. Apenas 32% da população russa recebeu duas doses da vacina.