A imaginação é a chave mestra que abres as portas da poesia, do erotismo, da aceleração criativa. A imaginação foi indispensável para o homem dominar o fogo, construir a roda, pintar, esculpir, escrever. Na literatura há dois processos imaginativos: um que parte da palavra para chegar à imagem e o que parte da imagem para chegar à expressão verbal. Dante em “A Divina Comédia” busca definir o papel da imaginação, a parte visual da fantasia que precede a imaginação verbal. Aliás, neste ano de 2021 faz setecentos anos da morte desse escritor tão festejado. O grande Otto Maria Carpeaux define “A Divina Comédia” como o maior poema da literatura universal. Ele compara essa obra com as demais que poderiam ser concorrentes, mas conclui que em Dante está o universo literário inteiro. Adverte que é uma obra de difícil leitura, precisa ser lida, relida, e na verdade pode acompanhar a gente ao longo da vida. Foi o que disse Alberto Manguel em recente entrevista à revista “Quatro Cinco Um”, um deleite aos viciados em leitura.
Para se aproximar de Dante, da sua grande obra, é preciso ir devagar, pelas beiras, como se come mingau. Eu não como, mas lembro dos conselhos de Leonel de Moura Brizola, que gostava desse exemplo. Na minha família de agora há um clube do mingau, do qual não faço parte, mas acompanho seus integrantes com interesse. Aprender sobre a imaginação com Dante é uma delícia, e Alberto Manguel tem um livro, “Uma história natural da curiosidade”, que é uma viagem com Dante através de sua vida e obra. A originalidade da “A Divina Comédia” é, como escreveu Erich Auerbach, perceber o homem não como herói remoto, lendário, não como um representante abstrato ou anedótico, mas como um homem tal como o conhecemos na sua realidade histórica.
O canto XVII do Purgatório é sobre a imaginação do leitor: “quem te move, se os sentidos não te incitam”. A imaginação é provocada pela experiência dos sentidos. Na verdade, a fantasia, a imaginação, o sonho, é um mundo de potencialidades no qual transcorre a beleza das experiências. Ler Dante pelas bordas tem sido uma diversão, onde uma frase é uma passagem para viajar junto a ele, a Virgílio, a Beatriz, a Carpeaux. Nesses tempos tensos e difíceis da pandemia, tempos sombrios da política de morte no nosso querido país, precisamos, entre todos, mais e mais da imaginação. Imaginar é voar, imaginar é dar rédea solta aos devaneios, como uma história de experiência escrita por Walter Benjamin.
Benjamin, em “Experiência e pobreza”, relata uma fábula de Esopo: “O velho vinhateiro”. Na fábula, o pai conta a história de que haveria um tesouro na terra e os filhos aram, aram em sua busca. Os filhos fazem uma interpretação errada que leva a uma ação correta; errar tornar-se um ato eficaz, porque a história do pai exigiu um esforço pela parte dos filhos e eles descobrem, ao final, que a vinha era o próprio tesouro. Essa é a sabedoria transmitida pela história do pai, logo, uma vivência, arar a terra, foi transformada em experiência para os filhos. Essa fábula de Esopo repensada por Benjamin é uma experiência, assim como as frases de “A Divina Comédia”. Precisamos de experiências, são elas que enriquecem a vida, transformam, embelezam e potencializam o entusiasmo. Frente ao cansaço, as dores das milhares e milhares de mortes induzidas, é preciso renovar as experiências para viver o reino do espanto mesmo com lágrimas. E sonhar o hoje a partir do ontem, entre dores, amores, e assim excitados iremos imaginar o amanhã.