Tou me guardando pra quando o carnaval chegar (Chico Buarque)

Não faz muito, fiz um comentário lamentando o desrespeito às regras para contenção da Covid-19 no Rio de Janeiro. As imagens de aglomerações são realmente fortes e dão uma sensação do que meus avós chamavam de nish guit, melancolia, desalento. Entre as reações ao que escrevi, ficou claro que a desesperança fez uma entrada triunfal no ambiente em que vivemos. Um gentil leitor chegou mesmo a dizer que o ser humano é um projeto que não deu certo. Não recrimino as reações. A sucessão de crimes, ofensas, baixarias, mentiras, que invadem o cotidiano é descomunal. Parece que estamos mergulhados num monte de lama e que emergir não será possível. É peso demais. Para essas pessoas, o resumo da ópera é o seguinte: no meio da floresta escura, os espectros parecem invencíveis.

Fico especialmente preocupado quando gente das novas gerações baixa a guarda. Nessas horas, é importante lembrar da História, senhora caprichosa que não se rende a vontades individuais. Imaginemos, por exemplo, o período nazista na Alemanha. Como deviam se sentir todos os que, de alguma forma, não se adequavam ao modelo pregado pelos barões do III Reich? Os massacres de dissidentes e “racialmente impuros” ganharam força com as vitórias militares no início dos anos 1940. Asfixia. Até a reviravolta de Stalingrado, resistir parecia não apenas temerário, mas inútil. E, no entanto, a maré virou.

Fiquemos na pátria amada, salve, salve. Durante o regime protofascista de Vargas, pensar diferente ou ser de esquerda era vestibular para a censura ou, pior, a tortura. O DIP, Felinto Müller e seus sabujos não estavam para brincadeira. A descrição das masmorras estadonovistas fazia inveja à eficiência germânica da Gestapo. E, no entanto, a maré virou.

Ainda no país do carnaval. Até pelo menos 1974, a ditadura civil-militar instalada em 1964 navegava em águas relativamente tranquilas. Quero lembrar de dois episódios da fase negra, que acompanhei de perto. Nos anos 1970, foi ministro da Justiça o Armando Falcão. Sinistro personagem que repetia o mantra indecente “nada a declarar”. Criou uma lei eleitoral, rotulada com o seu nome, que proibia os candidatos às eleições legislativas de falar no horário de propaganda da TV. Apareciam fotos dos distintos, com uma voz lendo currículos. Puro picolé de chuchu. Em 1974, Falcão apareceu como xerife de bangue-bangue, posando ao lado de uma gráfica do PCB estourada pela repressão. Tempos de pancadaria. Delfim Neto, Henning Boilesen, Erasmo Dias, Silvio Frota, Sérgio Fleury, Golbery do Couto e Silva, Carlos Alberto Brilhante Ustra, Jarbas Passarinho, toda a milicada, pareciam imbatíveis. E, no entanto, a maré virou.

Claro que a maré não vira por obra e graça do espírito santo. A cada momento o povo encontra as formas adequadas de resistência, gerando uma cadeia de efeitos que vai ganhando densidade. A reunião de vizinhos para protestar contra a escuridão na rua, o fortalecimento da imprensa alternativa, a luta sindical mesmo que dentro de regras arbitrárias, os espaços estudantis, o engajamento nas novas formas de comunicação, o gesto solitário de um não à autoridade, a germinação de formas avançadas de lutas de classes. Tudo lubrifica as rodas da História.

Vou insistir. Compreendo a frustração e o sentimento de impotência que andam circulando por aí. No entanto, é preciso, mais e mais, interpretar e, sobretudo, agir nos movimentos pendulares. Drummond, que um dia foi capaz de escrever que “os homens não melhoraram/matam-se como percevejos”, foi o mesmo que, em outro, conclamou: “Estou preso à vida e olho meus companheiros/não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. No fundo, é isso mesmo. E termino com outro poeta, Mario Benedetti: “Lento pero viene/el futuro se acerca/despacio/pero viene”. Repito: lento pero viene. Lento pero viene.

Abraço. E coragem.