SOBRE A IMPRENSA E A POLÍTICA.
O grande encontro promovido na semana que passou, que reuniu em uma bela live, o jornalista Reinaldo Azevedo, Gustavo Conde, linguista, músico e ativista político e o historiador Fernando Horta, estabeleceu um marco no período recente, tão talhado por divisões tidas como insuperáveis e bolhas de aço, na medida em que houve de fato um diálogo do qual germinaram propostas para o enfrentamento do momento político. Entre os destaques da fala de Reinaldo, sua convicção de que o deputado Daniel Silveira teria que ser preso pelos crimes cometidos, tidos por uma minoria expressiva (nominalmente 26% da Câmara dos deputados) como apenas o exercício da liberdade de expressão. Pois foi que durante a transmissão ao vivo, saiu a notícia da prisão do deputado por ordem do Ministro Alexandre de Moraes, do STF.
Desta live, conduzida por gente corajosa que soube estabelecer um ambiente de respeito sem preconceitos ou ranços do passado, muitas reflexões podem emergir nos dias seguintes, e que me estimularam a sintetizar aqui numerosas ideias que cultivei ao longo dos últimos anos.
Reza a lenda, que pelos idos de 1958, na Copa da Suécia de futebol, o técnico Vicente Feola fazia uma preleção logo antes do jogo com a Rússia, na qual detalhava a melhor sequência de jogo, os papéis e movimentos de cada jogador, descrevendo quase que uma coreografia que levaria o Brasil à vitória. Imediatamente após a fala de Feola, o genial Garrincha teria dito: – Já combinamos com os russos?
A sábia fala de Garrincha era no fundo uma forma simples e prosaica de “desenhar” a teoria dos jogos, um corpo matemático formulado por John Von Neumann, um dos maiores cérebros que habitou o planeta.
Desenhando de outra forma, imaginem que um determinado time de futebol memorize toda uma coreografia que será executada da mesma forma com 4 adversários diferentes. Pergunta-se: os resultados dos jogos será igual pelo fato do time programar-se a fazer as mesmas coisas? Claro que não. Ainda que o jogo seja previamente “combinado com os russos”, fatores de acaso poderão interferir no resultado.
O jogo da política não é diferente sob esse aspecto, e diante do número de elementos envolvidos, infinitamente mais complexo e exigente.
Em uma palestra do professor Carlos Melo que assisti no início de 2010, perguntei (já antecipando mentalmente a resposta) ao douto cientista político sobre o que o PSDB, que governouo o país por 8 anos, teria feito no período de 2003 a 2010 e no ato da pergunta já antecipei publicamente o meu voto que seria dado à Dilma, para a perplexidade da audiência pertencente à elite financeira paulistana. A resposta do professor foi exatamente a que eu imaginava ser a verdade e ao mesmo tempo o que eu queria ouvir. Ou seja, nada. O PSDB ficou, no nível federal, fazendo uma oposição sem qualquer proposição e jogando cascas de banana acreditando que Lula nelas pisaria ingenuamente, além de nutrir uma dilatada esperança de que o governo Lula cairia diante do mensalão, da crise de 2008 e outras mazelas. E assim, o partido não produziu nada nos 8 anos seguintes a governar o Brasil, e por isso mesmo, jamais mereceria a vitória eleitoral, política, moral e até mesmo ética. O comportamento do PSDB seria extensivo a 2014, quando, para a minha perplexidade, em abril daquele ano, Aécio Neves anunciava os convites para a elaboração de um plano de governo. Sim, perplexidade, pois desta vez, o partido e seu candidato confessavam que em 12 anos de oposição não teriam construído um único esboço de projeto para o país. Esta era a principal oposição ao governo PT.
Tudo isso até agora para dizer quem eram os russos do grande pleito político nacional neste um pouco mais de década.
E tudo isso até agora para colocar a imprensa em campo aqui no nosso jogo, e convidando o Reinaldo Azevedo a comentá-lo.
Em um outro texto recente, contestei a tese de Millôr Fernandes que dizia que imprensa que não é oposição não é imprensa, e em meus argumentos, digo que tenho para mim que a função da imprensa é informar de forma equilibrada, e ainda que opinativa, preservando o conjunto de parâmetros que permita ao leitor a formação de opinião própria.
Na sua entrevista, Reinaldo Azevedo justifica-se neste contexto de forma convincente, no sentido de colocar como valor fundamental a sua independência e autonomia, mostrando que o mesmo nível de oposição que impôs ao PT e seus membros aplica ao governo atual, o que de fato faz, impiedosamente, se podemos assim dizer, e que da mesma forma que criticou o PT por aquilo que teve como erros, critica os desvios e crimes da Lava-a-Jato, expondo as vísceras das ilegalidades que tiraram Lula do jogo político em 2018. Sim, talvez Reinaldo se destaque por esta pureza de princípios e a coragem de ir contra a grande corrente.
Agora chegamos ao cerne do que pretendo expor. Tanto no jogo do Garrincha como no cenário político temos antagonismos permanentes, com a diferença que o jogo político não tem dois tempos e intervalo, e que quem tem que vencer é o país e não os partidos e seus representantes, por mais que o sistema tente corromper esta verdade na mente do eleitor/cidadão.
A imprensa “Millôr” centra o seu fogo no poder em curso ou no poder em exercício. Mas como disse o matemático Garrincha, tem que combinar com os russos. Ou seja, o jogo só pode ser entendido se analisarmos simultaneamente o time que está ganhando (no poder) e o time que está perdendo (disputando o poder). Isto por que o jogo em si mesmo é o resultado do confronto, e não do jogo de um lado só. A qualidade e as características do jogo imposto pelo adversário são também pedras fundamentais da construção política. Em termos mais objetivos, se o jornalismo se estabelece como cego voluntário em relação ao terreno do adversário, a compreensão do jogo fica impossível. Para nos atermos aos “autos”, como podemos imaginar um debate útil ou uma formação de opinião por parte da população que é informada por uma imprensa que ignora os movimentos – ou a inércia, no caso do PSDB – da oposição ou de outros adversários, comportamento este da boca torta do cachimbo de Millôr? Será que se Reinaldo, entre tantos outros analistas, radialistas, televisivos e blogueiros tivessem também centrado fogo na absoluta incapacidade da oposição de formular teses e projetos convincentes e fundamentados dentro do campo democrático e constitucional, estaríamos nesta quadra da história?
Longe de mim querer estabelecer qualquer santidade aos governos PT (ou a qualquer outro), mas sim mostrar que o jogo depende também dos “russos”. Se o adversário joga com canelada e carrinho por trás, dar canelada e carrinho por trás é o mínimo que o lado de cá terá de fazer se quiser realmente disputar a partida. Em todas as fases de qualquer processo político o comportamento do adversário moldará o jogo, esta é a síntese de Garrincha aplicada à política e consagrada previamente pela Teoria dos Jogos de Van Neumann.
Se eu pudesse pedir algo ao Reinaldo Azevedo, e sim, eu pediria isso a ele por que penso que ele é capaz de processar o que digo com tranquilidade (o mesmo seria impossível a Marco Antonio Villa, por exemplo, que usa de seu título acadêmico para ludibriar a opinião pública), eu pediria que doravante e nos momentos oportunos, dedicasse boa parte de sua retórica à análise do adversário. Certamente, se a imprensa tivesse observado o jogo dos “russos” com a mesma vontade e dedicação que usou nos últimos tempos, certamente o fascismo, que é uma síntese do unilateralismo materializado pelo olhar desta imprensa, não estaria hoje no poder e disseminado, ainda que na perigosíssima casa dos 30%, na nossa sociedade.
Se na política (e na atuação da imprensa como atores políticos que são!) não pudermos combinar com os “russos”, o mínimo a fazer é conhecer muito bem o jogo deles.