O canto do galo, o mugido da vaca, a nhaca de estercos variados, todos viraram patrimônio. Acham que é piada de carnaval? Pois o Parlamento francês aprovou uma lei que protege os sons e odores do campo, chamados de “patrimônio sensorial”. Os senhores parlamentares previnem, dessa maneira, curiosas batalhas judiciais, como a que envolveu vizinhos numa ilhota na costa atlântica da França. Um deles reclamou contra o canto matutino do galo. Fico imaginando o que seria deste pobre camponês se morasse, por exemplo, na bucólica avenida Brasil, porta de entrada do Rio, com seus idílicos tiroteios, sua invencível poluição sonora, sua paciente decadência. Mon dieu!

Os sons do silêncio estão especialmente vivos neste carnaval cancelado. Esta é, tradicionalmente, uma época infernal para quem não é da fuzarca. Ficar quieto beira a heresia para os que se esbaldam por aí, fantasiados de quem não são, alegres com data de validade e por decreto monárquico. Sem os estribilhos dos bebuns, os blocos de bexigas soltas, os acordes desafinados de zé pereiras, posso sentir a brisa suave dos meus silêncios. Sem culpa. E quem são eles?

Há o recolhimento plataforma, aquele amplo, generoso, que antecede uma súbita inspiração ou a conclusão de um processo criativo. Uma boa história, narrada pelo Ruy Castro, descreve bem isso. João Gilberto, na fase anterior à Bossa Nova, passou temporadas em várias cidades, polindo canções e acordes que ainda não tinham nome nem método. Sempre na pindaíba. Numa delas, em Juazeiro, sua terra natal, os pais acharam que seu comportamento reservado era “estranho”. Concluíram, bem ao gosto da época, que devia estar com algum transtorno psiquiátrico e resolveram interná-lo numa clínica de Salvador.

João aproveitou o tempo para uma pacificação interna. Um dia, olhando o horizonte, comentou com a psicóloga:

“Olha o vento descabelando as árvores …”

“Mas árvores não têm cabelo, João”, observou a doutora, querendo, talvez, pegá-lo numa encruzilhada inconsciente.

“E há pessoas que não têm poesia”, arrematou João, impiedoso.

Poucos anos depois, o “estranho” consagrou uma batida que revolucionou a música brasileira. Precisava do silêncio grávido de mudanças.

Que tal o silêncio resistência? A arte de calar, irmã da arte de escutar, pode ser arma insinuante. Quando fui dispensado de servir o Exército, os milicos marcaram uma cerimônia de juramento à bandeira, no Passeio Público. Na hora marcada, um oficial, engomado pela obediência cega, deu início ao ritual. Repitam comigo: juro isso, juro aquilo. Sem ver o menor sentido naquelas palavras, me calei. Preferi a companhia das rãs que, alheias ao burburinho, pulavam despreocupadas entre nossas pernas. Sábias batráquias.

Quem tem certa quilometragem há de lembrar do livro infantil Pinote, o fracote, e Janjão, o fortão. O garoto mandão tiranizava os amigos, impondo, com intimidação muscular, sua vontade. Era o dono da bola, dos destinos, dos risos das piadas sem graça. Até que Pinote, um magrela esperto, descobriu seu ponto fraco. O Tarzan mirim não podia controlar, muito menos dominar, o pensamento dos outros. Em silêncio, qualquer um podia criar um mundo sem opressão, onde o fortão não existia. Foi a senha para desestruturar o reino da violência. O menino de maus bofes desmontou. Não há como algemar o pensamento.

Calar não é estar só. Neste mundo de aparências, quanta gente mimetiza a música The sound of silence? Tagarela sem falar, ouve sem escutar. No surpreendente tríduo momesco esbórnia free, sinto falta dos bons interlocutores, aqueles que não se limitam ao “e aí, tudo bem?”, mas perguntam pelo calo de estimação, pela dor na alma, pela ideia genial que nunca sai do papel. Mercadoria escassa. Que fazer? Esperar o retorno da “vida ao vivo”, que permite escolher os necessários momentos de silêncio, sabendo que se pode rompê-lo sem trauma. C’est la vie.

Abraço. E coragem.