Numa dessas zapeadas vadias, tão comuns em tempos de pandemia, tive o prazer de rever Eles não usam black-tie, obra-prima de Gianfrancesco Guarnieri. Conforme a história evoluía, eu a associava a outro texto primoroso: Rasga coração, do Oduvaldo Vianna Filho. Em ambos, organicamente politizados, há uma ruptura familiar, ou melhor, o rompimento do pai com o filho. No caso do primeiro, cuja ação se passa em torno de uma pequena metalúrgica em São Paulo, o pai é um militante sindical que não admite a ação fura-greve do filho. Depois de ásperas discussões, o filho é expulso de casa e, de quebra, rejeitado pela namorada, grávida dele. A fronteira de um respeito inegociável tinha sido violada.

Em Rasga coração, o protagonista Manguari Pistolão, também um militante e espécie de alter ego do Vianninha, tenta dialogar com o filho Luca, versão radicalizada da geração hippie. Em vão. Luca rejeita, com vizinhanças de deboche, a forma como o pai se inseria no seu tempo. Cria seu próprio mundo, paralelo, onde o “novo” já estaria instalado. As posições colidem dramaticamente até o diálogo final, quando Vianninha, pela voz de Manguari, diz que “nem tudo o que é novo é revolucionário”, que revolucionário é ele, sem pirotecnia, que mergulha na realidade para ter condições de transformá-la. A ruptura é inevitável, Luca é expulso de casa.

Pode parecer que esta associação tenha vindo por conta das muitas guerras familiares que emergiram em 2018. Relações afetuosas que se dissolveram ou enfraqueceram, identidades que implodiram, diálogos interditados, adultos renunciando a histórias de vida e trocando de mal. É possível, o inconsciente é soberano. No entanto, o sujeito oculto está lá atrás, nos anos 1950.

Naquela época, foi muito popular o seriado de TV Papai sabe tudo (Father knows best). Pequenas histórias ingênuas, centradas numa típica família norte-americana de classe média. O pai bonachão, provedor do sustento de todos. A mãe, sempre muito feliz, acomodada no papel de administradora da casa. As crianças, sorriso Kolynos engessado no rosto, jamais entravam em conflito com os adultos. Um universo edulcorado, cada macaco no seu galho e satisfeito com as bananas disponíveis. E a gente vivendo uma realidade que não combinava com aquilo.

Há um conto da Clarice Lispector, Feliz aniversário, que desenha com tintas rascantes um encontro familiar. Acho que ninguém sai ileso duma leitura dessas. As diferenças, escondidas atrás de convenções, arrombam a porta e se mostram por inteiro. O resultado não é nada agradável. No fundo, penso que Clarice reforça a visão de que relações verdadeiras não devem se prender a aparências.

Minha geração, e não só ela, cresceu sob o espectro do seriado americano. Violência, especialmente a psicológica, nunca foi uma questão conversável. Afetos estavam enquadrados na imagem idealizada dos núcleos familiares. Fugir daquilo provocava culpa e desorientação. Como na vez em que o Menino se recusou a visitar um tio doente, com o qual quase não tinha contato. Foi apenas sincero. Rasgou o manual de boa conduta. Ainda lembro das discussões dos Grandes quando a Mãe decidiu “trabalhar fora”, ou seja, deixar de ser apenas uma retaguarda e ter voz ativa. Na época, isso podia dar demissão por justa causa. A família sempre foi um organismo em movimento, carregado de contradições e, não raro, à beira de ataques de nervos. O marketing anunciava um produto – a harmonia perpétua – que não existia.

Não há amor automático. Razão tinha Gentil Cardoso: “Quem se desloca recebe, quem pede tem preferência”. Em qualquer relação saudável, o movimento é vital. Pais e filhos, por exemplo, passam por muitas fases e é natural que haja desencantos. Se for possível, e isso depende de um afeto primordial, elas levam a novas relações, como se cada um precisasse se redescobrir de tempos em tempos. Quando não é possível, bem, aí entram Guarnieri e Vianninha.

Abraço. E coragem.