O programa domingueiro parecia inocente. Um casal de vizinhos, pais de um colega peladeiro, o convidou para um cineminha na Praça Saens Peña. Tudo correu bem, até que os distintos aprontaram uma falseta. Depois do filme, o Menino foi forçado a entrar numa igreja para a missa das seis. Nunca tinha frequentado aquele ambiente, que lhe pareceu pouco acolhedor, mais asfixiante do que austero.

Antes de mais nada, sentiu-se desrespeitado. Os adultos sabiam que a família do Menino era judia, sem vínculo com a tradição religiosa católica. Criança, não tinha condições de reagir àquela agressão, tão inesperada quanto covarde. O jeito foi mimetizar. Observou que as pessoas se ajoelhavam numa espécie de tábua comprida e estreita, juntavam as mãos, fechavam os olhos e pareciam cantar palavras incompreensíveis. Sem entender o que as movia, fez os mesmos gestos. Talvez tenha apertado os olhos com força, para tentar se transportar para fora dali. Não deu certo, o ambiente continuou opressivo, triste, os adultos ignoravam seu mal-estar.

Estava tomado por sentimentos angustiantes. Sabia que aquele não era seu lugar, que aquelas não eram suas palavras. Seria castigado por pisar naquele “outro” sagrado? Que tipo de traição estaria cometendo? Valia a pena, ou melhor, teria coragem de delatar o que estava acontecendo para seus pais, que certamente tomariam providências de gente mais velha, consequências em aberto? Turbilhão na cabeça de uma criança que tinha saído de casa querendo apenas se divertir um pouco.

Não me lembro do que aconteceu depois. Daquela tarde amarga sobraram aflições e muitas, muitas, perguntas. Influenciado pelo livro Deus: um delírio, do cientista Richard Dawkins, queniano criado na Inglaterra, resolvi repatriar algumas delas. É o caminho necessário das sombras inconscientes para o terreno da razão e do esclarecimento.

Qual é o direito que os adultos têm de determinar o que é certo e errado, passando uma mensagem absolutista para as crianças? Dawkins destaca uma observação do psicólogo Nicholas Humphrey: “As crianças têm o direito humano de não ter a cabeça aleijada pela exposição às péssimas ideias de outras pessoas”. A consequência imediata seria, por exemplo, deslegitimar a pretensão, absolutamente corriqueira, de pais injetarem sua religião nos filhos desde a mais tenra infância. Se alguém afirmar, como pondera Dawkins, que uma criança de quatro anos é keynesiana ou marxista, será tachado de tolo ou lunático. Como é que com tão pouca idade se pode dominar os fundamentos destas escolas de pensamento? Interessante é que ninguém se surpreende se a mesma criança for rotulada de cristã, muçulmana ou judia. Parece natural, dado o peso que a religião assumiu nas sociedades, mas é igualmente absurdo. Cada um deve ter o direito de construir sua identidade, quando tiver condições de elaboração intelectual-afetiva e em qualquer terreno que seja. Isso evitaria traumas e demônios desnecessários.

Arrisco generalizar: religiões são território de culpas e castigos. O inferno, com suas câmaras de tortura perpétuas, é uma das imagens mais aterrorizantes que conheço. Igrejas barrocas e neoclássicas de Salvador foram construídas graças a doações de ricos colonizadores, que esperavam purgar culpas e escapar das manhas de Belzebu. Dizem que na igreja de São Francisco, no Pelourinho, foram usados cerca de mil quilos de ouro em pó. O preço da salvação é caro. Tentar seduzir um juiz que não se vê e cujas sentenças são irrecorríveis transforma multidões em aflitos profissionais.

Quando este tipo de assunto vaza para o espaço público, a maionese desanda de vez. O ministro da Educação, um dos terrivelmente evangélicos, está sendo processado por homofobia. Afirmou ao Estadão que a homossexualidade não é “normal” e atribuiu sua ocorrência a “famílias desajustadas”. Confunde sua leitura da Bíblia com o imperativo da Constituição. É uma variante do determinismo tóxico que já abordei.

Quem precisa de infernos imaginados no nunca provado pós-vida? Já temos, aqui e agora, nossos demônios, nossas inseguranças, nossos tombos, nossas neuras. Não será com ameaças piromaníacas que aprenderemos a lidar com eles. Antônio Maria tratava a encrenca à sua maneira. Numa velha crônica, descreveu as jangadas no mar de Fortaleza. Ansiava por voltar a andar de jangada “ouvindo histórias de coragem no mar, sentado no banco da proa, com o rosto molhado, a mente curada e o peito livre do peso da angústias”. Reconhecia seus diabinhos internos, mas preferia navegar com eles ao estilo de Caymmi ao invés de pedir carona ao barco de Caronte.

Abraço. E coragem.