Bem que o horóscopo avisou. Aquele seria um dia de Saturno colérico, de Plutão com os ovos virados, de engarrafamento na Via Láctea, do espectro de Manolete massacrando Touro. Uma vizinha, versada nos mistérios magnéticos, confirmou que o pêndulo zodiacal tinha feito um movimento estranho. O universo, portanto, conspirava: nada de atrevimentos!
O universo, ora, o que é ele frente à vontade de um adolescente, projeto não se sabe de quê, turbilhão hormonal enfeitado por um jardim de espinhas? O primeiro mandamento para o quase ex-Menino era enfrentar a autoridade. Qualquer uma, fosse ela doméstica ou cósmica. As armas para a batalha estavam prontas: calça boca de sino, cinto largo, fivela de cowboy, camisa apertada e, sobretudo, uma caderneta de estudante com idade falsa. Pronto. Um pouquinho de Minâncora para disfarçar as espinhas e o figurino do malandro dava para encarar a censura dos 18 anos no cinema.
Antes de continuar, um breque. Nos anos 1940, 1950, circulava pelo Rio o delegado Deraldo Padilha. Quando punha a mão num suspeito de malandragem, diz a lenda que fazia um teste. Pegava uma laranja e jogava dentro da calça do elemento. Se ela saísse embaixo, tava liberado. Ficasse presa na perna, cana. Os malandros costumavam andar com calças de bocas apertadas. Moreira da Silva chegou a gravar um samba, “Olha o Padilha”, que satirizava as táticas do meganha. “E jogou uma melancia, pela minha calça adentro e se enganchou no funil/Eu bambeei, ele sorriu/Apanhou uma tesoura e o resultado dessa operação é que a calça virou calção”. O delegado Padilha foi pré-boca de sino …
Voltando à vaca fria. O cinema Comodoro, estalando de novo, estreava Bonnie & Clyde (que os gênios da titulagem nacional chamaram de Uma rajada de balas). Censura: 18 anos, é claro. A perspectiva de ver Faye Dunaway em plena forma produzia uma estranha salivação, um abre-te, sésamo, de sensações inéditas. A transição para não sei o quê tinha reações incontroláveis, sexualidade em erupção. Bem, o desafio era grande, o fiscal do cinema não costumava dar refresco, mas o prêmio era tentador. Abrir a cortina do mundo pós-dezoito anos, com seus prazeres proibidos, valia o risco.
Chegou antes da hora, passos inseguros. A bilheteira, entediada, vendeu o ingresso sem desconfiar da tensão quase sólida no ar. Meio caminho andado. Entregou o papelzinho para o sujeito que dava acesso à sala. Carteira, exigiu. Mostrou o documento grosseiramente falsificado. Percebeu um sorriso irônico do fiscal, antes do xeque-mate: mostra a identidade. Nada mais havia a fazer. Calça, cinto, fivela, Minâncora, não resistiram ao bafo inegociável da autoridade. Barrado no baile. Dezessete não é dezoito.
Saiu andando pela rua Haddock Lobo, sem bússola. Travo amargo na boca, solidão gritando. Ali perto ficava o bar Divino, onde costumavam se encontrar Roberto e Erasmo Carlos, Jorge Ben, engatinhando na Jovem Guarda. Naquela noite vazia, o bar lhe transmitiu silêncio e desolação. Teve a impressão de que todos o observavam, ridicularizando a tentativa fracassada de violar os segredos dos adultos. A volta para casa teve trilha sonora imaginada. A voz da Maysa disparando meu mundo caiu, me fez ficar assim.
Muitos anos depois, assistiu Bonnie & Clyde. O que havia de tão sinistro ou perigoso na saga de dois assaltantes apaixonados, barbarizando na América profunda? Talvez a moral hipócrita que não admitia o mau exemplo da glamourização da violência. E não, Faye Dunaway não ficava pelada.
Bem que o horóscopo avisou.
Abraço. E coragem.