Descobri sempre de que tenho saudades de Bassan.
Não me lembro de como o conheci. Só que, de um repente, nos tornamos amigos.
Ele, que começou a me contar sua vida, melancólico. A quem eu regressava ao seu povoado, do lado de lá, longe, onde chamamos, insistentemente, Palestina.
Bassan me contou de que já não dormia mais com a esposa e, caso se separasse, ela seria a vítima, expulsa de casa, e renegada pela comunidade. Então lhes cabia o sofrimento de viverem num teto que já não era mutuo, aparentemente por causa dos filhos.
Eu acreditava em sua visivel tristeza, e no jeito de me chamar, com seu sotaque característico. Além de eu gostar muito do nome Ana, ele era realmente feliz saindo dos lábios desse meu amigo.
Numa das homenagens mais emocionantes a qual presenciei, o tributo a memoria de Juliano Mer Kramis, levei-o comigo. Eu poderia jurar que ele não se sentiu à vontade, e até teve um certo receio. Que desculpo, pois se as proprias criancas que foram parte do Teatro da Juventude, dirigido por Juliano, não tiveram permissão do governo israelense para virem à cerimonia, porque se sentiria ele bem nesse evento.
Meu maior momento de contradição era quando o levava para casa. Eu viajava por alguns quilômetros e, subitamente, parava num posto de controle de entrada e saida de palestinos, onde me faziam minúsculas perguntas de praxe, ate desnecessárias pela presença de um carro com chapa israelense. Seguiam-se cem metros continuos com o carro e, então, meu confesso atordoamento. Ao cruzar a esquerda, quase imediatamente, havia aquela placa, em frente aos olhos, como uma certeza : ” Proibido continuar, risco de morte “.
Várias vezes, fiz o caminho de volta pensando em como seria, caso eu continuasse o trajeto. Não que Bassan não me pedisse para parar o carro antes de chegar à placa, ou que eu não seja uma alma transgressora, como o sou.
Simplesmente fiz o correto. O que não esmoreceu, em momento algum, minha indignação por aquelas palavras, escritas também, é lógico, em árabe, acessíveis à qualquer criança em idade escolar.
O quanto me senti culpada ao, simplesmente, voltar, e ter a liberdade de circundar por onde fosse, cabeça ao vento, desejo e manias. Que nenhuma barreira pudesse me impedir de transpor.
Bassan transpirava carencia, e seu povoado, provavelmente, era menor do que seu coração. Queria mais do que os segredos do Alcorão, mesmo o respeitando. E me repetiu, varias vezes, de que não havia no livro sagrado qualquer menção ao suicidio por sacrificio. No qual acreditei, não pelos ditos dele, mas pelo afeto depositado em nossa amizade.
Ana, não esquecerei. Muitas vezes me recordo dele, do qual guardei uma bonita fotografia, fiel ao homem que era.
Por onde andará Bassan ? E outros, que tem seus desejos castrados por imposições que lhes violentam a vontade ? Porque, necessariamente, o culto obscurece as boas ações individuais, e deixa individuos ordinarios em seu modo de pensar ?
Porque ha crianças privilegiadas, em boas escolas, nutridas pelos incentivos de uma sociedade que nelas investe, e outras resignadas a viverem em povoados onde, ao invés de serem benvindas, as pessoas são convidadas à morte ?
Há um principio básico que gera as guerras. A falta de generosidade para com o outro, e o não olhar para uma criança.
Não se basta levá-las a um hospital, se dele elas necessitem. A atitude é heróica, mas não contumaz.
As flores precisam de carinho, água fresca, e de se saberem seus nomes, uma após a outra. E que seu local de moradia não seja sinônimo de nao vida.
Bassan, minha sempre saudade. Torço e anseio para que o destino lhe tenha sido caridoso. Tenho certeza de que apareci em sua memoria, algumas vezes. Senão por outro motivo, porque lhe trouxe um ar fresco de mulher emancipada, com uma postura diferente frente às vicissitudes da vida.
Passaram-se anos, e é Bassan que eu gostaria de encontrar. Meu bom amigo palestino.
Fiel a si mesmo.
Shukran. Quem sabe, por ai.