Fique frio – para cada sonho que não se concretiza há um pesadelo que também não (Millôr Fernandes)

Houve tempo de um pesadelo recorrente. Eu aparecia encurralado, de costas para um muro elevado. No horizonte, começava a se formar uma imensa onda e, dentro dela, apareciam tubarões famintos. Como em qualquer pesadelo, meus movimentos estavam em câmera lenta. Impossível tentar uma saída, os tubarões se aproximavam rapidamente, como se tivessem asas. Acordei assustado várias vezes. A cena toda parece produção barata do canal SYFY, que explora o pânico que estes peixes provocam no imaginário, especialmente depois do clássico Tubarão, dos anos 70. Naquele canal, eles povoam ciclones, nuvens, têm duas ou mais cabeças e outros delírios divertidos.

O teatro do inconsciente tem aprontado novos cenários e roteiros nesta pandemia. O mais frequente me joga em alguma rua do centro do Rio, que se modifica em cada sonho. Comum a todos, o final. Acabo num beco escuro, no meio de famílias andrajosas, que me ameaçam. A muito custo, consigo fugir. Poderia imaginar o óbvio. A Covid-19 é semeadora fértil de medos. No entanto, seria uma explicação fácil demais.

A região central do Rio tem muitos significados para mim. Foi lá que meu avô materno conseguiu seu primeiro emprego, nos anos 1930. Vindo da Polônia, com escala em Buenos Aires, exerceu o ofício de alfaiate. Lembro-me do giz com que riscava tecidos e da imensa tesoura que os cortava. Imagino que não trabalhava como Samuel, pai dos Irmãos Marx. Também alfaiate, bastava olhar as confecções para identificar as obras do seu Samuel. O freguês levava camisas com mangas de comprimentos diferentes. As calças não fugiam deste destino assimétrico. Oi vei!

Da modesta alfaiataria na rua da Alfândega, Abrão migrou para a Baixada Fluminense. Comprou uma pequena loja, a Confecções Líder, em Duque de Caxias. Lembro-me das calorosas discussões familiares para escolher o nome do estabelecimento. Vingou o sonho de uma vaga liderança, mais fetiche do que realidade. Anos depois, já aposentado, voltou ao centro. Antes de parar de vez, trabalhou numa loja de aviamentos para alfaiates, ramo hoje engolido por grandes centros de distribuição de linhas, botões e outras miudezas.

A rua da Alfândega, com outras adjacentes, concentrou grande número de comerciantes judeus e árabes. Conviviam em harmonia e as discussões entre brimos acabavam em esfiha, no restaurante Cedro do Líbano ou na Padaria Bassil. Pouco sobrou daquela era. Os Abrão e Salim disseram adeus e foram embora. Se fossem uma música de carnaval, seriam o pierrô-tradição chorando pela colombina-modernidade padronizada. Como diria Noel Rosa: A colombina entrou num butiquim/bebeu,bebeu, saiu assim, assim/dizendo: pierrô cacete/vai tomar sorvete com o arlequim.

A pandemia acelerou o processo de decadência do centro do Rio, iniciado há décadas por administrações desastrosas. Talvez as ruas dos meus pesadelos sejam as de hoje, habitadas pela miséria, pelo abandono e por comércios fechados. Um dos últimos a fechar as portas existia no mesmo endereço desde 1940. Foi a Casa Alberto, chapelaria com clientela de responsa. Despediu-se junto com as leiterias, sebos, bares e restaurantes tradicionais.

Por falar em leiterias, não se trata de chorar o leite derramado. Não defendo, como um célebre personagem de novela interpretado pelo Mario Lago, o ressurgimento de lojas para mordomos. A gente está condenado a administrar o tempo. Quem fica preso no passado, corre o risco de cair na depressão. Pode não parecer, mas o passado é maleável. Ganha a forma das nossas idealizações. Ai, meus tempos, diziam nossas avós, segurando a lombar estropiada.

Só vejo uma saída. Meio irreal, mas sonhar nem sempre dá em pesadelo. Que venham prefeitos apaixonados pela cidade, capazes de mobilizar os cariocas para reconstruí-la. Quanto ao centro, tendo a concordar com o Álvaro Costa e Silva, cronista veterano, dos melhores. É preciso habitá-lo e não demoli-lo. Talvez estejamos precisando de mais bermudas e menos ternos. Nos sentidos literal e poético.

Abraço. E coragem.