No Jornal da Cultura de ontem (1/1/2021) o jornalista Leonardo Sakamoto, ao tentar desenvolver o tema do descontentamento de setores da sociedade com a imprensa na medida em que esta faz “oposição” (aspas propositais) aos diferentes governos, incomodando assim os partidários de governos a, b ou c. Para tentar clarificar, usou a máxima de Millôr Fernandes, cuja postura em relação ao papel da imprensa era de absoluta intolerância com a imprensa que não se dispusesse a priori ao papel de oposição. “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”, dizia o respeitável mestre, que nesta equação estabelece um ponto no qual não me resta opção senão a da oposição que ele tanto pede, no caso, completamente distópica, pois não sou jornalista nem imprensa.

Não. Não concordo que é papel primário da imprensa o de se opor ao que quer que seja. Tenho o claro entendimento que a função de análise crítica é completamente diferente da crítica sem análise, e mais diferente ainda daquela postura que muda a sua escala de valores de acordo com a oportunidade. Se consigo imaginar – nos meus ideais – uma função social da imprensa, esta que jamais foi definida com limites precisos por qualquer código, até por que a limitação precisa desta função já criaria por si paradoxos insuperáveis, vejo nela uma atividade social que pretende trazer ao seu consumidor informação e condições de formação de opinião através do confronto entre os inúmeros elementos factuais de uma dada narrativa com um conjunto de valores minimamente estáveis, ainda que sempre insuficientes para que se vislumbre isenção plena, mas cuja uniformidade permita que pelo menos se vislumbre uma vontade de isenção.

Assim, como tentou fazer Sakamoto sobre o ombro de Millôr, comparar o tipo de oposição que a imprensa fez aos governos populares de 2003-2016 com o tipo de oposição que faz ao governo atual, corremos o sério risco de validar toda a formulação que estruturou o golpe contra a democracia que culminou no estado de coisas atual. Se sequer imaginarmos que o conjunto de valores utilizado contra os governos populares é o mesmo do qual se utiliza agora para combater um governo ignorante, obscurantista, violento e autoritário, estaremos incorrendo em sérios sofismas.

Para tanto, vamos examinar um caso, o do historiador (e tido como jornalista) Marco Antônio Villa, que talvez condense na sua atuação de forma bem didática os elementos que quero trazer ao debate. Villa exerceu crítica cáustica aos governos populares fazendo acusações gravíssimas e sem provas, especialmente ao Presidente Lula, a quem se dirigia como “o bandido de São Bernardo”, “chefe da maior quadrilha que já houve no Brasil”, usando e abusando de sua titulação acadêmica para arrebanhar seguidores como provocador corajoso e polêmico, o que certamente encorajou tantos outros ao mesmo comportamento ou pior. O problema é que Bolsonaro “nasceu” muito antes de Lula, e toda a sua atuação na vida pública (juntamente aos seus filhos) pautou-se, até o quanto se sabe no momento, por atitudes, vontades e atividades que rebaixariam o seu alvo predileto à condição de amador desorientado. Status hierárquico que jamais foi reavaliado pelo respectivo autor.

Engrossando o caldo de Villa com as grandes corporações como Estadão, Globo, Veja, Folha, Jovem Pan, Isto É, entre outros, vemos hoje todas essas mídias cumprindo as metas de Millôr Fernandes não mais baseados nos valores pretendidos por Millôr (que aqui contesto) mas sim em um ato de desespero pela preservação de uma democracia que eles em conjunto contribuíram para destruir.

Bingo. Se analisarmos friamente os fatos, não é difícil concluir que sob o pretexto de se praticar uma oposição a priori a grande imprensa e seus atores causaram um imenso prejuízo à sociedade. E não poderia ser diferente. Se como imprensa eu assumo um papel primário de oposição, certamente só poderei fazer isso com um imenso poder de censura sobre os dados da realidade, condensando no meus discursos os pontos negativos de um determinado governo e omitindo sistematicamente tudo – ou quase tudo – o que poderia ser usado ao seu favor. É este o papel da imprensa? Penso que não, pois no meu entendimento isto não tem como dar certo pelas simples razões aqui apresentadas.

Tudo isso não exime o dever de uma imprensa responsável de fazer sim oposição uma vez que identifique ações de governos que atentem contra uma escala de valores compartilhada entre o conjunto da sociedade, explícitos (como por exemplo no texto constitucional), e os elementos éticos da boa prática jornalística, igualmente explícitos ou não.

Se em algum momento nossa grande imprensa, sob uma suposta defesa de Sakamoto, fez o que fez em tributo a Millôr Fernandes, não fez mais do que contribuir para a sua degradação, reforçada ainda por uma exigência de “autocrítica” por parte do PT, esta que nas questões mais fundamentais não é exigida sob os mesmos pesos e medidas de quem se arroga a este direito.

Por fim, ressalto que minha visão aqui é a de consumidor e cidadão, visão esta pessoal, não se tratando, de forma alguma de intromissão em seara alheia e que de forma nenhuma tem a pretensão de ser impositiva, deixando as questões aqui tratadas abertas ao debate, mas deixando explícita minha frustração pessoal com a visão de Sakamoto exposta em seu comentário no Jornal da Cultura.