Espaço. Grande espera. Ninguém vem. Esta sombra. (Alejandra Pizarnik, poeta argentina)
As portas haviam fechado fazia horas. Ele se recusava a ir embora. Tantos chopes, tantas rodas de samba, tanto olho no olho, tudo agora é passado. Jazia estropiado. A fantasia de Homem-Aranha que vestia piscava para uma vassoura velha, as piaçavas gastas faziam dueto com seu olhar distante. O Vaca Atolada, boteco das antigas, se foi. Como é que deixaram acontecer? O super-herói vai ter que baixar em outra freguesia. Os caminhos da confraternização, do encontro, da paquera, do álcool sem culpa, dos tremoços, do ovo cor-de-rosa, do pastel de vento, da humanização do concreto, estão cada vez mais estreitos neste triste país.
Em meio a um impasse civilizatório, este ano flerta com o Inferno. O poeta João Cabral de Melo Neto estudou no Colégio Marista, em Recife. Sentia tédio nas aulas de religião, dizia não acreditar nem no céu, nem no purgatório. “Mas acredito no Inferno”, desconsolova-se. A espezinhar o pós-vida, a imagem de seres maliciosos, com tridentes, potes ferventes e tudo o mais, invadiu seus maiores temores e sentou acampamento pelo resto da vida. Com toda a carga de culpa em que as religiões são especialistas. Na avaliação do poeta latino Lucrécio, a coisa é um pouco diferente: “Aqueles suplícios que dizem existir no profundo Inferno estão todos aqui, nas nossas vidas.” O fechamento do Vaca Atolada e de milhares de pontos de encontro tradicionais é testemunha da perda de referências, que traz frustração, desencanto, solidão, tristeza. Quem precisa morrer para entender isso?
Não vale a pena fazer uma lista de todas as sombras que tornaram 2020 um ano amargo. Fico em duas, que estenderão seus tentáculos por muito tempo. As queimadas na Amazônia e no Pantanal mostraram Tânatos em toda a sua exuberância. Não satisfeita em dizimar o tecido social, vitaminando o ódio, a quadrilha macabra do Planalto ajudou a devastar os biomas mais ricos do planeta. Ao lado da destruição física, consolida-se o atraso mental, igualmente nefasto.
A ocupação de espaços por denominações evangélicas ultrarreacionárias faz a engrenagem civilizatória emperrar. Conquistas sociais importantes estão sob ataque. A pastora Elizete Malafaia, esposa do Silas, deitou falação na Folha de S. Paulo. Ela lidera cultos para mulheres, nos quais repercute preconceitos desautorizados pela OMS (como a tentativa de enquadrar o homossexualismo como “distúrbio”) e defende a “mansidão” das mulheres (traduzindo: as mulheres devem abrir mão do protagonismo na vida conjugal, submetendo-se aos caprichos e desejos do homem). Quando li a matéria, me lembrei dos judeus ultraortodoxos que vi em Jerusalém. A hierarquia era visual. Na frente da família, que se dirigia à sinagoga, vinha, destacado, o homem. Em seguida, os meninos e, no final da fila indiana, as mulheres e as meninas. Não se trata apenas de repudiar a intromissão da religião no espaço público, a promiscuidade religião-Estado. É uma luta necessária no dia-a-dia, contra a superstição, o fanatismo e o atraso adornado por belas palavras.
Para não ficar muito azedo, tenho que saudar uma enorme vitória do engenho e da criatividade do Homem. Uma cápsula espacial japonesa perambulou por seis anos pelo Sistema Solar e trouxe de volta amostras do asteroide Ryugu. O corpo celeste, com 4,5 bilhões de anos bem vividos, poderá revelar, entre outras belezinhas, a origem da vida na Terra. Foram apenas 100 ml de material recolhido, que ajudarão a saciar uma curiosidade milenar. Todo o projeto é a antítese do vento medieval que surrou o planeta neste ano.
Dizem que entramos na era de Aquário. Um longo período de amabilidade, luminosidade, bondade, serenidade e outras rimas. Data venia, discrepo. Nada há no horizonte que permita otimismo. Para estimular a soldadesca, a burguesia jurou que a 1ª Guerra Mundial era a “guerra para acabar com todas as guerras”. Duas décadas depois de seu término, novo conflito resultou em dezenas de milhões de mortos. Desde então, não se passou um único dia sem que, em alguma parte do mundo, acontecesse um conflito. Em maior ou menor escala. Os tacapes estão sempre agitados, apesar das polianas. Que elas argumentem com os generais que Júpiter está alinhado com Marte e a paz reinará entre os povos.
De resto, em 2021 e depois, nos resta viver. Que é, cada vez menos, assunto para amadores.
Abraço. E coragem.