Enquanto arrumava as malas, a chuva caia copiosamente encharcando o jardim e alagando as ruas. Entre uma peça e outra que dobrava, os relâmpagos iluminavam a noite e as diferentes orquestrações dos trovões amiudavam meu coração.

Estava de partida sem saber quando voltaria para casa. Teria que fazer exames e a cirurgia. Ainda a epidemia não havia se espalhado pelo Brasil, talvez. Olhei para minhas cachorrinhas Jade e Nininha, que atentas aos meus movimentos já sabiam que eu iria viajar. Elas sempre sabem. Há entre nós um diálogo permanente de afetos e longos papos; moramos apenas nós três na casa outrora tão cheia de filhos e amigos. O tempo é assim. A vida ao virar a esquina, nos leva à outras vicissitudes.

Separei um sapato macio, sabia que faria muitas andanças de clínicas em clínicas e de hospital em hospital. Não porque faria o percurso andando, mas pelas travessias, a ordem de chegada e o tempo que ficaria de pé. Pensei demoradamente em tudo que estava a acontecer comigo desde julho de 2019. O que seria uma prevenção se tornou em luta para curar-me.

Pela manhã, olhei com carinho para cada árvore frutífera. Fui ver minha horta medicinal que, com tanto zelo amava cuidar. Suspirei e toquei cada uma como se fosse um até breve, mas sabia que não seria assim. Levei minhas cachorras para o hotel de uma querida amiga, lugar em que elas são bem cuidadas e amadas.

Ao voltar para casa, chamei um táxi. Deveria ir. Fechei a casa e disse para mim mesmo, vou sentir saudades. Durante o percurso, as casas e árvores das alamedas pareciam que corriam assustadas. A introspecção tomou-me pelas mãos e o pensamento emudeceu.

Foram seis horas de viagem. O meu filho recebeu-me e o quarto já estava organizado. Minha nora e minha neta estavam na sala a espera. Meu filho levou as malas para o quarto e elas vieram logo para para junto de mim e entreguei os presentes. Ficaram felizes. Cuidados para pele de Michelle e uma jaqueta de frio para Maria. A família estava se organizando para as férias de julho no Rio Grande do Sul. Meu filho já conhecia, pois aos dezoito anos lhe dei uma viagem para lá, mas as meninas não. Queriam tocar na neve em São Joaquim. Era o grande plano e sonho familiar, mas tudo deve ser adiado…

Tomei um banho revigorante, a sopa foi servida. Logo que terminei, fui à varanda que dá em uma paisagem nativa da floresta Amazônica. A noite iluminada pela lua e estrelas suavizava a flora e os ruídos noturnos da fauna, que soavam em várias cadências. A sensação de solidão foi remetendo-me há tempos distantes de quando cá cheguei do Nordeste, nos anos de chumbo [Ditadura Militar]. Tempos cruéis e difíceis. Uma jovem irreverente com sonhos de liberdade. Aqui foi de certa forma um abrigo e uma nova forma de ver o mundo e o povo da floresta.

Eu e meu filho conversamos um pouco e fui para o quarto. Logo o cansaço venceu-me e dormi. Foi um sono profundo intervalado de sonhos, em que sempre estava correndo e com muito medo.
Ao acordar, já tinha uma agenda de exames que estão em processo ainda para poder fazer a cirurgia, pois de delonga em delonga, o covid-19 chegou e o nosso cotidiano mudou totalmente.
Quando estive com o cirurgião oncologista, tínhamos planejado todo o processo cirúrgico, mas os dias foram mudando de paisagem, a morte ancorara no Brasil. Tivemos várias conversas e estamos a esperar o momento ideal, mas sabemos que nada será mais o mesmo. Nenhum ambiente hospitalar é seguro. Carrego então duas histórias, uma invisível e assustadora que ronda a todos, o vírus; outra, concreta e alarmante dentro de mim, um tumor com carga de malignidade.

Para quem vivia sozinha, os dias estão sendo um exercício de amor e tolerância, pois a convivência agora com outros, mesmo família, que a gente ama, tem que ter sabedoria de enxadristas. Não sou nenhum Magnus Carlsen, mas tenho que avançar no jogo da convivência e entender as funções das peças no tabuleiro para um tempo de espera e seguir com o jogo, porque sabermos que as cores das peças tem seu posicionamento. Então humanos somos e precisamos de regras para vivermos pacificamente, mesmo sabendo que as DRs sempre farão parte do cotidiano familiar.

A medida que a pandemia avançava, estava fazendo os exames. Foi muito interessante e assustador o dia que fui fazer os de sangue. Saí cedo de casa para evitar pessoas… Máscaras, luvas, álcool gel na bolsa, um susto nos olhos e movimentos apressados. Entrei no laboratório não tinha nenhum paciente. Suspirei aliviada. Não quis de momento sentar-me em frente da atendente de uns dos guichês, mas todos olharam-me insistentemente, que resolvi sentar-me. Respiração ofegante, respondia a moça para ser encaminhada a sala de coleta. O atendimento, pareceu-me que durou uma eternidade, e, aos poucos começou a chegar gente. Fui ficando aflita.

Como nunca se pensou em pandemia, as cabines são muitas e uma ao lado da outra, espaçamento mínimo. Uma senhorinha sentou-se em um box pertinho do meu. Tentei manter a respiração em um ritmo calmo, ela de repente tocou em meu braço e perguntou, “Está com diarreia?” Espantada, olhei para ela e disse não, que não estava. Ela insistiu na conversa e eu querendo ficar calada e não abrir minha boca, minhas mãos começaram a suar nas luvas e ela insistiu, “Dr. Gustavo?” balancei a cabeça que sim. Ela com muita simplicidade falou, “Eu estou com diarreia!” então só fui entender o diálogo por conta dos exames que eu carregava do gastro e as imagens das capas eram iguais às que ela carregava. Sorri intimamente e com educação a cumprimentei com a cabeça em reverência.

Fui chamada pela ordem de chegada para fazer a coleta. Minha história de acesso é complicada, sempre é um sofrimento, pois até o enfermeiro entender que só com scalp à vácuo-24, já levei inúmeras furadas, até a criatura pedir ajuda ao coordenador já estou no meu limite. Quando entendem que só com butterfly se faz a coleta razoável, nossos olhos se cruzam e eles sempre falam algo, “como pode!”

Sempre tem um lanche para todos que vão coletar sangue, mas tenho dificuldades de alimentar-me fora de casa e principalmente em ambientes problemáticos. Agradeci o lanche que me ofereceram e saí o mais rápido possível. Estava com as mãos trêmulas. Ao chegar no carro de meu filho, já sentia que o medo estava estabelecido e que tudo seria mais complicado a partir dali.
Não relatarei minhas idas sucessivas as várias clínicas, pois em cada uma vivi experiências diferentes e humanas. Contarei um pouco de meu exílio e minhas sensações.

Na minha casa não tenho TV, portanto, todas as informações e leituras de jornais são via online. Aqui, no AP de meu filho tem três, costume da família. Respeito. Tenho assistido jornais locais e nacionais para acompanhar a evolução e comportamento do coletivo, das autoridades sanitárias e políticas. Vivemos tempos surreais no Brasil, o Governo Federal, em particular, o que está presidente, que o chamo de “Inominável” tem a perversidade na alma. Sua retórica vulgar e iletrada vai de encontro com a vida da população e do conhecimento científico. Poucas medidas e péssimo exemplo como figurante maior da nação, é o que temos recebido desse homem que por 57,5 milhões de imbecis chegou a presidência.

O perverso Goa’uld [outro codinome, que uso em momento de revolta], o que está presidente é o escárnio e a indiferença da deformidade humana, com a dor dos familiares e pelos seus mortos, essa dor foi expressada com um “E daí!” A nação indignou-se, mas ele continua a zombar de tudo e de todos em suas vis aparições públicas.

O que vale-me é a busca por atividades, tenho assistido documentários interessantes e bons filmes para a “nóia” não ser destrutiva. Sinto em mim uma “sobrevivente” do caos. Ontem, revi um filme que me marcou muito, “A sociedade dos poetas mortos,” sou professora de Literatura e aprendi, que através da arte, podemos mudar as cores do mundo e com coragem ajudar na transformação da vida de nossos alunos, mostrando-lhes esse universo que se agiganta e nos faz crescer. Fazer isso é salutar.

Leio todos os dias artigos de opinião, entrevistas sobre política, economia e pós pandemia. São inúmeros olhares, agarro-me nos de Byung-Chal Han, Hararri, Krenak, Chomsky e Nicolelis, outros vou lendo e construindo o meu olhar e sensações cotidianas e de futuro incerto. O que nos espera? Não não o sabemos.

Minha neta está em uma fase muito interessante, tem tantas peculiaridades que fico observando os seus movimentos. Tranquila no seu mundo e conversas infindáveis com a melhor amiga via jogos e bate papo e segredinhos online. Ela sempre fala para mim sobre privacidade.

Quando era pequenina tinha outro jeito de relacionar-se. Nossos encontros eram incríveis. A brincadeira, o teatro, o carinho eram a ordem do dia. Hoje, a melhor amiga que era a vovó, agora é outra. Ciúmes! Virei uma avó decorativa, acho. Talvez seja a fase pré-adolescente, talvez… O que fazer? Curto os momentos que se dão quando ela vem para o meu quarto. Aí, as risadas chegam e alegram o meu coração.

No final de abril, o meu filho que mora em Foz do Iguaçu e faz medicina [para me ajudar nos custos do curso], lava roupas em uma lavanderia em uma das partes da noite, pois estuda durante o dia, começou a lavar enxovais dos hospitais, mesmo com todos os paramentos de cuidados e assepsia, pegou o covid-19, foi terrível a sensação de não poder ajudá-lo.

Floresta e mares nos separam e por ter bronquite alérgica, a preocupação e o medo foi uma constante. Ele se recupera dentro dos padrões, mas sabemos que é terrivelmente assustador. Por vezes, peguei-me com a dor de uma possível perda, mas sentia da importância dos cuidados médicos e da fé primeira. Meu grande amigo e cuidador HaShem estava no comando, como fala uma de minhas irmãs. Não sou religiosa, mas acredito nos cuidados do criador do universo. Hoje, F. me ligou e falou que estava fazendo cuscuz. Ele ama cozinhar, isso é um sinal que está se recuperando de verdade.

Tenho dormido muito a tarde; o sono é o meu esconderijo secreto. Tenho a sensação que dormindo, o tempo passa e a vacina pode ser concluída. Lógico que sei dos passos da ciência, mas é tão generosa a utopia da espera, que guardar o corpo nos braços do sono se torna um alento, talvez seja fuga! Quem não se esconde em tempos de guerra… Quem?

Estou lendo dois livros simultaneamente, “Cenas da vida na Aldeia” de Amós Oz e “As Rãs” de Mo Yan. O primeiro são relatos e histórias diferentes em uma aldeia de Israel, com descrições que aguçam o processo da imagética. Tudo fica tão próximo, tão pertencente. Assim com a generosidade dos personagens vou construindo meu sonho de escrever coisas lindas e fortes.

A delicadeza da obra “As Rãs” nos toca com a suavidade de uma brisa, mas ao mesmo tempo, esconde peso, dor, sofrimento, pobreza, submissão. Um romance missivista com recordações e memórias de um tempo “surreal,” em que a intervenção do Estado no ventre de todas as famílias chinesas é revelada. Sabemos que quase nada mudou na China, só a crescente tecnologia e desenvolvimento econômico. O narrador sobrinho fabula as transformações da vida de um povoado simples ao contar a história de sua tia parteira na comuna.

No fragmento “[…] lhe vinha à mente a imagem de uma médica correndo de bicicleta sobre um rio congelado, a imagem de uma médica com a maleta de remédios nas costas, um guarda-chuva na mão e as calças arregaçadas abrindo caminho em meio a uma enxurrada de rãs, a imagem de uma médica com um bebê nos braços, as mangas sujas de sangue, rindo as gargalhadas, a imagem de uma médica de cigarro no canto da boca, semblante angustiado e roupa amarrotada…” Fez-me fechar os olhos e refletir as vitórias e angústias desse tempo de peste. Não era mais um personagem, mas milhares de rostos conhecidos ou não lutando contra a morte.

Todos os dias sinto que estamos perdendo parte de nossa história e construindo um novo e misterioso tempo futuro. Não sabemos mais do dia imediato. Quem partirá? Não sabemos e o coração se amoldura em saudades antecipadas. A tia parteira, não perdia nem mães e nem filhos, hoje lemos e ouvimos depoimentos de médicos, médicas e pessoal da enfermagem, em desespero, contando-nos a escolha difícil de quem vai viver ou morrer.

Li relados de médicos de minha terra, descrevendo as situações das UPAS, o quadro agravado do estado dos pacientes, mortes terríveis e pessoas pedindo entubamento para perderem o controle de seus corpos por não suportarem o sofrimento. Nossos profissionais estão no limite de suas forças. Estudaram, aprenderam e sabem lidar com vida/morte, mas não nesse nível de desespero e caos.

Eu tenho vários sobrinhos na linha de frente sem saberem do próprio destino e longe de suas casas, pois não podem voltar e levar a morte aos mais frágeis. Isolados lutam pela vida de seus pacientes e por si mesmo.

Hoje perdemos um dos maiores contistas do Brasil, Sérgio Sant’Anna, o vazio se estabeleceu e busquei em suas obras a possibilidade do encontro e guardar em meu coração algo que era característico de seu pensamento de grande escritor, que as palavras são escorregadias e traiçoeiras uma vez pronunciadas ou escritas e que nos leva sempre a necessidade de esclarecê-las, e, assim, a eterna interlocução afetuosa ou dolorosa é pertinaz em um mundo que gira e dá cambalhotas, ou seja, o dialogismo em curso eternamente.

Estamos perdendo tantos tantos, que ando a fingir que o Aldir Blanc apenas foi ali para compor nossa dor. Ao eternizar a canção, O Bêbado e o Equilibrista, um hino aos heróis da resistência, que voltavam do exilio pós Ditadura, fez-me voltar ao tempo e as emoções de receber Miguel Arrais no aeroporto de Recife… Corri muito da polícia política ao panfletar no Recife velho e na Livraria-7. Foi quando me mudei para a Floresta. Não dava mais, o perigo estava em cada esquina como bicho traiçoeiro na espera do bote.

Moraes Moreira em, “Lá vem o Brasil descendo a ladeira,” nos ensinou em sua música, que o Brasil desceu a ladeira de fato, em tempos tão politicamente desprezíveis… Tenho que chorar também os homens e mulheres sem rostos do nosso país… Mas sei que a dor é assim.

As tarefas de casa são divididas, lavo minhas roupas, banheiro e louças. Não nego a neurose estabelecida por mim ao higienizar a casa de banho. Sou detalhista e cuidadosa, passo águas sanitária e sabão azulejo a azulejo e finalizo com álcool-70. Tudo limpo e com esperança de nenhuma bactéria ou vírus suportar o cuidado. Sempre termino exausta porque é uma briga invisível. Quem venceu, eu ou os bichinhos microscópicos?

A louça é o meu tormento, tenho em minhas mãos a arte de quebrar. Sempre coloco uma atenção redobrada em cada copo, pois muitos já voaram de minhas mãos misteriosamente; o pior é que estou quebrando louças de minha nora.

O prato da bisa foi uma dor e vergonha imperdoável. Prato antigo de muitas histórias familiares. Fiquei arrasada. Não havia forma de devolver e nem de restaurar. Apenas um pedido de desculpas e um sentimento estranho e fragmentado. Vi-me no prato em pedaços literalmente.

Minha neta está recebendo as aulas online. Os professores e as tarefas. Sempre que sou convocada, dou aulas de português para auxiliá-la nos exercícios. Sempre está estudando os sintagmas nominais e verbais e os determinantes. Aí penso que a metodologia está fria e sem a movimentação da leitura de textos literários e interpretação. Não falo nada, mas não gosto do método. Acho que estaria muito mais preparada se a literatura fosse a grande âncora para qualquer outro saber, mas tento bordar com mais beleza as aulas dos sintagmas. Sou detalhista e amo explicar, mas minha neta quer pressa ou abstrair-se da aula. Eu a entendo, o método é por repetição e não através de um texto que a faria mais atenta e interessada.

Pouco saiu, pois só para os exames que são espaçados e com hora marcada. A pandemia trouxe esse benefício. Era tudo por ordem de chegada e havia aglomeração. Fui fazer a tomografia, um dos exames, olhei todos os detalhes da clínica. Percebi que vai levar um tempo para as pessoas usarem as máscaras de forma correta. Por mais que haja instruções veiculadas o tempo todo, a máscara sempre dá um passeio em um lugar não apropriado.

Aprenderemos um dia que a higiene é a melhor prevenção? Antes da pandemia, os hábitos eram bem Idade Média, lógico com diferenças nos trajes, desodorantes e perfumes. Mas se olharmos um pouquinho no pretérito, a sociedade andava a não lavar as mãos.

Ligo um dia sim outro não para saber das meninas, pois elas precisam ouvir a minha voz e saber que a “mamãe” não as esqueceu. Jade late e corre e volta e corre, Nininha fica com o rostinho nas patinhas e os olhinhos derramam tristezas. Me coração tem um aperto, mas sempre falo, “Rosinha ama vocês!” Ainda bem que elas gostam dela.

Minha família mora no Nordeste, graças as tecnologias da comunicação, estamos conectados. No início da pandemia pensei em cada um dos irmãos e irmãs. Todos tem idade avançada e comorbidades. Não sei se estaremos vivos, pois o vírus é “Franco Atirador,” em que momento e em quem vai tocar não sabemos. Estamos todos no universo da incerteza do próximo dia. Falo com um e fico sabendo de todos, pois lá em casa é muito engraçado…Todos falam ao mesmo tempo e todos cuidam de todos. Meus pais tiveram quinze filhos. Uma família cidade. As histórias e memórias familiares são intricadas e diluídas em nossas lembranças.

Estou fazendo um tapete para Nina, a gatinha de minha neta. Ela é a gatinha mais esquisita que já conheci. Tem TOC., ela recebe um mínimo de carinho e já passa o dia lambendo o lugar que foi tocada. É muito engraçado. Só aceita carinho quando ela decide. Temperamental! Mas tenho uma doce lembrança de quando fiz a minha primeira cirurgia, eu estava com muita dor e exausta. Ela percebeu o sofrimento e passou a noite comigo, e, em vez em quando, passava a patinha em meu rosto. Isso é solidariedade e cuidado. Fiquei cheia de gratidão. Hoje sinto que ela ler em meus olhos, mas continua arisca. É a marca dela com todos da casa.

Nas noites insones, o meu pensamento leva-me a tantos lugares… Visito asilos e toco nas mãos envelhecidas de cada um ou uma, que por inúmeras circunstancias estão longe de seu filhos e parentes. Fecho os olhos e digo palavras de carinho e ternura. Sinto a solidão e o exílio maior que os impuseram. Lembro-me de Alzira, uma velhinha que quando adolescente visitava-a aos domingos em um asilo lá em Olinda. As tardes daqueles domingos eram regadas de histórias de sua vida e meu encantamento por ela crescia. Um dia ela partiu e as tardes de domingo ficaram cinzentas por muito tempo.

Lembro-me dos refugiados que estão sem o norte da pátria. Quantos sofrimentos o capital e as guerras tem imputados aos homens dessa vida. Muito pouco, os seus rostos são mostrados pela mídia. Parece-me que o homem sem rosto de Gaibéus precisa acordar. O abandono é de uma dimensão jamais possível de estabelecer. São pessoas que arrastam suas histórias sem rumo e nem lugar.

Avassalador é pensar suas necessidades básicas negadas. Como somos pequenos e egoístas demais diante do outro… O que fazemos não é o necessário e nem se quer somos capazes de perceber que precisamos de tão pouco, mas queremos o mais o maior do capital. A vida dessa gente escorre entre os nossos dedos e sabemos que não são anéis, mas pessoas com vivências e lindas e tristes histórias.

Aqui no Brasil, o descaso com o povo da floresta e as agressões contínuas de morte e tomada de territórios pelos senhores do “mundo” toma-me como um soco no estômago e sinto-me impotente e descalça no chão da floresta. Minha voz não é audível, é uma voz miúda, acanhada sem orquestração. Choro. Quando leio Krenak, suas palavras atravessam o meu ser e são afirmativas do nosso descaso e crueldade contra o povo primeiro e sua sabedoria. Ele fala que devemos parar de vender o amanhã, pois se não aprendermos com essa pandemia, não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Assim mergulho em suas palavras e sei que o homem jamais mudará a sua gana e destruição pela grana, que destrói coisas belas, lembrando uma canção de Caetano.
A divagação cresce e segue as favelas de minha pátria, onde a morte vem com vários aspectos. Lá, ela é o policial que mata preto porque é preto, é o saneamento e a água porque não são reconhecidos como gente da nossa gente, não merecem os cuidados básicos de saúde… Mas o vírus os uniu em coletividade, mesmo com o descaso do governo, lutam e lutam; a irmandade se estabelece.

Dormir para mim é um alento, ficar acordada é dor. Estou no exílio do meu exílio e isso a cobrança é bem estipulada e fico longe de mim e perto do coração. Estranhamento.
Hoje fui à varanda para contemplar a lua e sentir o perfume que vem da floresta. A lua majestosa enfeitando o céu com as estrelas, se quer imagina que seus enamorados estão morrendo e que ela terá que cativar outras gerações. Pensei em meu pai, homem contemplativo, um verdadeiro mago na compreensão da natureza. Ele sempre sabia através da direção do vento se teríamos chuva ou a escassez nos feriria por um tempo. Um homem do tempo à moda antiga. Até o canto dos pássaros lhes dizia alguma coisa.

Sai novamente para ir ao médico, passei por vários sinais e senti falta dos meninos e meninas de circo com seus malabares. Em que lugar estão nesse momento? Fiquei distante e vi que é tão bom voltar pra casa. São nessas pluralidades humanas, que penso e gostaria de ser uma maga para mudar o rumo dessa prosa. Penso nessa gente tão livre e sofrida na busca do pão cotidiano. Nenhum projeto para ajudá-los, os circos, a maravilha de minha infância estão falindo. A indústria tecnológica os engoliu… Quem hoje, como criança, corre atrás do palhaço?

Li, hoje, uma história de uma moça que narra sua maternidade quando fazia faculdade. Uma gravidez solo sem nenhum apoio familiar. Em cada palavra a dor era percebida e voltei ao tempo de minhas duas gravidez. Era uma jovem que atravessou o mar e chegou à floresta, entendi aquela jovem como se fosse eu a sentir pulsante em cada medo e incerteza. Não foram solos minhas gestações, fiquei viúva com 23 anos, com duas crianças: uma de três anos e outra de dois meses. Lutei e ainda luto por eles. Ela sobreviveu e eu também. Coisas de mulheres que olham para vida com a certeza de que dia é apenas mais um no calendário e que o tempo muda as cores das trilhas. Ela finaliza o texto como uma ótima escritora de suas memórias. Eu estou aqui a escrever este.
13 de abril, desconfio dessa data histórica. Gosto do pertencimento de todos os dias. Pensei em senhor Zé Grande, um preto muito amigo de meu pai e que todos nós fomos ensinadas a respeitá-lo e amá-lo. Ele era neto de escravos. Meu pai sempre que contava a história dele se emocionava e nossos olhos enchiam-se de lágrimas. Ser preto neste país é terrivelmente doloroso. Ambos já partiram, ele primeiro e depois meu pai. Foi uma amizade linda de se ver. Todas as tardes dos domingos, eles se encontravam e os causos e vivências eram rememorados.

A dor se espraiou pelo Brasil no raiar do dia. Dia 13 de abril, 13 mil mortes pelo covid-19… As lágrimas são oceânicas, pois o mundo está a se curvar de dor, de despedidas solitárias, dos amores de seus amores. E aqui um perverso eugenista na presidência. Como suportar?

Tenho três amigos em Portugal, que sempre me dão notícias da terrinha… Beira, Porto e Lisboa. Penso como é bom ter um governo que respeita a ciência e a vida de seu povo. Quando Chico Buarque escreveu “Tanto mar” na sua primeira versão/75, há uma estrofe que canto baixinho, pois minha voz não é melodiosa… “Lá faz primavera, pá/ Cá estou doente[contente]/ Manda urgentemente/ Algum cheirinho de alecrim.” Ai vejo e sinto o que foi a Revolução dos Cravos para o povo português, e, o tanto que pensar, que na terra brasis precisamos de uma revolução ética e de esperança, pois estamos adoecidos.

Li em uma postagem algo que sabemos que sempre aconteceu e ainda acontece em várias partes do mundo quando não se tem uma saúde pública eficiente, “Los ricos com médicos privados, los pobres privados de médicos.” O que penso pós pandemia, mesmo sabendo que os mais brilhantes filósofos acreditam que não irá acontecer mudanças? Apego-me na poesia do sonho, na utopia do coletivo e desejo em pensamento para os grandes líderes implantarem um Sistema de Saúde Global, em que raça, religião, classe social, povos ancestrais, não seja pré-requisito para negação, mas todos sejam cuidados da mesma forma humanizada.
Os dias vão passando e pego-me a refletir o que o distanciamento social está a nos causar e causará, pois a mortandade que assola nos continentes, nos leva ao sentido mais avassalador de um romance distópico, pois no exílio de nossos quartos e olhando pelas janelas das notícias, sentimos o medo e a morte invisível e sorrateira à nos espreitar e a quem quer que seja, nas ruas ou esquinas em seus inocentes passos.

Número? Não são números! São histórias interrompidas independentemente da idade. Todos tendo ou não familiares, o coração estava ali ora triste ora esperançado, estava ali. Havia sentido de futuro. E o que temos hoje? Um dia por vez. E se tivéssemos sabedoria, seria o certo vivê-lo assim. Minuto a minuto rindo ou chorando. Mas não, esmagamos a maioria de nossos dias. Somos humanos apressados.

A Natureza tem se expandido e o meu coração se embala na ternura. Javalis foram vistos em Barcelona, um puma selvagem em Santiago do Chile, Cervos descansam sob cerejas no Japão, os pássaros, ó os pássaros! Ora emudecidos nos grandes centros por conta da poluição sonora, cantam alegremente e os homens em seus confinamentos, que outrora passavam despercebidos, agora escutam as cantorias e sentem, talvez, que devam mudar… A contemplação das janelas e varandas se tornou um ritual.

Decidi não me afogar em notícias sensacionalistas, pois alguns âncoras ao fazerem um teatro mórbido na escalada das manchetes, causam-me desconforto. A nossa voz tem um poder profundo, seja para construir uma imagem bela ou a destruição de sonhos, perspectivas. Sei que o Covid-19 está aí. É realismo, mas não há necessidade de narrar os números de mortes do dia, como se fosse um gol em uma partida decisiva. Livrai-me disso!

Com as amigas, em conversas de WhatsApp, falamos sobre os níveis de stress familiar ou do trabalho online. As entendo, pois trabalhei por 36 anos na educação, mesmo apaixonada pelo meu trabalho, cada fim de semestre tinha as correrias para fechamento e soluções dos problemas. Sempre assusto as meninas quando falo que amo assistir vídeos de limpeza de pele para retirada de cravos e espinhas. É profundamente relaxante. Quando eu era criança, papai me dava moedas para tirar suas espinhas. Havia uma negociação antes, tantas espinhas para tantas moedas. Morro de rir, quando lembro que dividia as espinhas no meio para ganhar mais moedinhas. Papai sabia e o enganador era revelado. O choro sempre vinha e mamãe acudia. A paz era estabelecida.

Tenho vivido uma relação mais próxima com os amigos do Faceboock, percebi, antes e as vezes, criticado por mim esse universo, que tem sido um paliativo eficaz em tempos de pandemia.

Quantas histórias lindas de superação dos medos, o encontro com a arte de fazer o próprio alimento, nossas infindáveis discursões políticas, os afagos através de comentários nas postagens, uma presença afetiva tão generosa, que solidão não faz festinha nesses momentos…

Sim, sempre vivi muito bem comigo mesma. Hoje, diante de minha antiga realidade, estou transbordante de gente. Lógico que as saudades de casa são reais, pois nossa casa, nossa história. Lembro do pomar com tantas frutas, das prendas dadas aos vizinhos, sempre aquele sentido de pertencimento a uma rua, aos jardins, ao cumprimento de rostos conhecidos e tantas particularidades que são só nossas. O horário de pôr o lixo para coleta, o cuidado. Tudo!

Hoje fui ao cardiologista para ele escrever um relatório sobre os exames para cirurgia. Quando comecei a frequentar médicos mais constantemente, constatei que o povo é muito doente. As salas de espera sempre abarrotadas, mesmo em ascensão da pandemia; costumava fazer uma vez por ano essa visita aos especialistas como prevenção, mas de repente a vida virou um pouco de ponta cabeça, então posso observar o contingente de pessoas adoecidas. Fiquei isolada em uma segunda sala, mas logo minha ideia foi copiada. Tudo bem, todos de máscaras e muitos com seu álcool em gel do lado. Creio que a realidade está de fato a convidar mudanças de posturas.

Sempre escrevo memorias e posto no Faceboock, foi assim que me desnudei e algumas pessoas estão me lendo. Não é vaidade, mas é gratificante saber pelos comentários que há um encontro da narrativa com o leitor.

Logo pela manhã fiquei a saber do pedido de demissão do ministro da saúde. O Brasil está à deriva, pois em menos de noventa dias já se foram dois. O presidente acha que é cientista e pesquisador e quer porque quer, que o protocolo para medicação contra o covid-19 tem que ter cloroquina. Ele se antecipou antes mesmo dos cientistas realmente analisarem os efeitos do medicamento, ordenou o laboratório das forças Armadas fabricar uma quantidade que jamais será possível de utilização como medicação, pois a malária, o lúpus e outras doenças que fazem uso desse medicamento, jamais conseguirão usá-lo em tão grande escala. O perverso quer obrigar os médicos do SUS a usarem esse medicamento. Quando já se sabe dos efeitos colaterais que afetarão outros órgãos do paciente. Mas por incrível que pareça, há uma chusma de fanáticos que acreditam nessa cura messiânica via “Mito e Cloroquina.”

A elite provavelmente não receberá esse tratamento, mas às expensas das massas, o poder desse indivíduo, pode se configurar. A letalidade é uma realidade, quem poderá prever a causa morte, se nem se quer temos testes suficientes. Hoje, não é o meu coração que chora, mas o pensamento que se expande em preocupação com o simples, que não vai nem saber o que estão a injetar em suas veias, caso o médico venha a obedecer esse protocolo incerto e genocida.

Já vivi o delírio da compulsão, sei dar dor que nos toma após o objeto de desejo comprado. Sei que há provavelmente uma doença global, muitos estão doentes e nem se quer percebem para buscarem ajuda. Eu sei o que é o fundo do poço e imagino a angústia das pessoas com tal problema e confinadas. Deu para perceber que o filósofo alemão, Peter Stoterdijk fala sobre como vai ser o regresso da frivolidade humana. A loucura que toma as pessoas no dia do “Black-Friday” vai ser fichinha para as propostas de consumo com promoções ávidas de lucros. Talvez, haja a grande onda da morte, ou seja, “novo universo da pandemia.” Só sei que o confinamento está a provocar uma disrupção tão grande, que a volta da frivolidade não será fácil. Mas podemos também pensar que pode haver uma nova forma de encarar a vida, não custa sonhar…

Quando estou em um avião e a aeronave inicia o processo de aterrissagem e vai mostrando a proximidade com a terra, em que as cidades vão ficando nuas com seus telhados, me quedo a pensar nas inúmeras narrativas que estão sob os meus pés, e não posso fazer nada… Assim, sinto-me hoje, lançada ao mudo das vítimas do Covi-19, suas famílias e suas lágrimas, não posso fazer nada. Este é o ano marcado pela dor e até quando, talvez, jamais saberemos. Só sei que eu estou escrevendo como forma de cuidado, pois minha voz é a palavra e ela está na vivência dos dias. E assim me conto.

Fiquei muito exausta e me desliguei das redes um pouco, há dias que tem um peso maior, uma energia que grita e nos atinge e mina as nossas energias. Queria uma massagem bem relaxante, mas esse desejo do corpo tem que esperar. Resolvi fazer respiração para oxigenar o cérebro. Sempre fico um pouco tonta, mas depois vem uma sensação tranquila e melhora o humor.

Liguei para o hotel de minhas cachorras, Jade fez arte. Ainda bem que não foi muito grave. Ela deve está ansiosa, sempre que ela faz algo é para chamar a atenção. Estou demorando muito para voltar, não sei se elas estão entendendo. Prefiro me contentar com os vídeos e fotos. A coisa já está opressiva, então tenho que minimizar.

Fiz um juramento que nem sei se vou cumprir, pois tudo é incerto… Quero grafitar todo o muro de minha casa, amo grafitagem. Acho que o terreiro de minha infância que eu desenhava quando chovia, será as paredes altas do muro que me separa da rua. Talvez faça isso…

Hoje, meu filho tomou uma cerveja e escutou rock, sempre que ele faz isso sozinho tem uma estrada a percorrer. Ninguém está longe demasiadamente do outro, dá para sentir as vibrações. Eu o olho e sei que a inquietação assolou a porta do pensamento. Devo ficar em meu quarto. O silencio é necessário.

Amanhã quero ficar menos exausta, pretendo dormir mais sedo. Não vou dá corda a insônia, tomarei melatonina, hormônio do sono. Talvez precise desse descanso, pois os dias se fazem longos e medrosos. Não posso deixar prevalecer a onda, ela é traiçoeira. Ela é capaz de te arrastar por guetos de profunda melancolia. Não posso permitir.

Tenho que cuidar do psicológico no meio desse coas, pois o físico está indo na direção incerta de uma cirurgia e sei que devo cuidar com mais rigor de mim mesma.

Maria entra no meu quarto, ela sabe que eu estou a escrever e sempre pergunta, “Vovó quantas páginas, não conte minha privacidade…” Eu falo, “Se você tomar um bom banho, não escrevo nada!” Ela está na fase do Cascão, e o interessante é que estamos a viver essa ternuras em tempos de vírus mortal. Cascão, personagem do HQ da turma da Mônica, está a lavar as mãos frequentemente, levando a criançada a se perguntar e imitá-lo. Viva Mauricio de Souza!

Recebi um convite de amigas queridas, para participar de um karaokê, imaginem isso! Minha voz é desengonçada e triste, não posso assustá-las. Nunca decorei uma canção, apenas versos que sussurro para o meu coração. Acho que nunca cantei em banheiro, não tenho lembranças nenhuma de qualquer fato sobre isso. Declamar poemas eu já fiz muito, mas cantar… Valei-me disso!
Olga Savary foi vencida pelo vírus. Hoje, as estrelas a receberá no lindo clube noturno, pois a poeta era uma exilada das manhãs e se vestia de noites e nesse encantamento viveu a poemar-se. Então rezemos com os poemas, assim sentiremos que não há limites para os versos prosseguirem. Amém!

Desabei-me nesses fluxos como se joga em uma cama, pois ainda os dias virão galopantes ou lentamente, não sei o que se dará ainda por estas plagas, apenas sei que estou a lutar. Viver é ainda a minha vontade, seja regando flores ou escrevendo versos. Por momento é o bastante, e, assim me visto de teimosia e coragem para o outro dia… O amanhã! Mesmo assim, Entre um acontecimento e outro do meu cotidiano, reflito sobre a dupla miséria que já vivemos, a social e a política. As duas, hoje, vivem uma simbiose acrescida da pandemia, que nos levará mundialmente a uma nova forma de viver, o pão que sempre faltou em muitos lares, agora os lares desaparecerão e a população de miseráveis será multiplicada. Se a pandemia revelou os invisíveis de todas as sociedades; pós Covid-19, o mundo, se não pensar em uma renda global, viverá, talvez, a pior mazela social, uma guerra civil de proporção nunca vista. Estou eu a cogitar um futuro que se quer ainda é palpavelmente concreto, mas pensado por homens e mulheres que estudam a história da humanidade.

O que fazer?