Quando eu era pequeno, eu tinha uma babá. O nome dela era Maria, mas eu a chamava de Iaiá e o nome acabou pegando.

A foto da qual eu mais me lembro dos meus primeiros anos sou eu aos dois anos dentro do mar, acho que em Santos, o barrigão pra fora, um enorme sorriso malandro no rosto — e a Iaiá no fundo, de vestido, até os joelhos dentro do mar. Nessa idade, eu dividia o quarto com o meu irmão e lá só tinham as nossas duas camas. Quando eu ficava doente, a Iaiá deitava no chão pra me colocar pra dormir e estava lá caso eu chorasse no meio da noite.

Assim começou a prédica do último dia 4 do rabino Rogério Cukierman, da Congregação Israelita Paulista, um Racista em Desconstrução.

No sermão da sexta-feira à noite, início do Shabat, ele falou de si mesmo, ao lembrar que aos 5 anos de idade, em 1976, passou na televisão a novela “Escrava Isaura”, contando a história  de uma escrava por quem o senhor da fazenda se apaixona. Isaura era branca, mas todos os outros escravos retratados na trama eram pretos; pretos assim como a Iaiá.

“Vendo aquela realidade e o que acontecia na minha casa, eu logo entendi qual era a regra do jogo. Fui conversar com a minha mãe e, muito sério, pedi pra ela que, quando chegasse a hora de dar a alforria pra Iaiá, ao invés disso, ela desse a Iaiá pra mim.”

O rabino confessa que a história da Iaiá o envergonha e que está ciente de que precisa assumí-la se quiser ter o direito de sonhar com um país diferente. “Eu conto essa história porque não quero mais me reconhecer na conduta daquele menino e para isso é necessário um profundo processo de t’shuvá.”

O termo quer dizer “retorno” e representa o esforço para retornarmos à melhor versão de nós mesmos, de corrigirmos nossas ações quando erramos, repararmos os erros que causamos e garantirmos que eles não voltem a acontecer. No começo de todo processo de t’shuvá está o reconhecimento do erro, que talvez seja a parte mais difícil.

O futuro rabino amava a Iaiá profundamente , mas ele se nega a se  esconder atrás desse amor e dizer que ela era como se fosse da família, porque ela não era. “Quando íamos jantar fora, ela não ia; quando viajávamos, ela só era convidada se fosse para tomar conta de mim; quando eu ia soprar a velinha do bolo de aniversário, ela nunca esteve lá na frente, junto com meu pai e minha mãe. A Iaiá era uma babá querida, cuja subjetividade foi muitas vezes negada, que foi objetificada, mas esses erros nunca foram reconhecidos sob a desculpa de que ela ‘era quase da família’.”

Iaiá é o resultado do racismo estrutural em que vivemos e no qual fomos criados, em que as moças pretas que moravam em casa eram sujeitadas ao preconceito banalizado pela cultura.

A história de Iaiá e do rabino nos questiona e nos obriga.

Quem de nós, da classe média paulistana, não teve a sua Iaiá, na figura de uma babá ou de uma doméstica, que mais corretamente deveria ser chamada de escrava? Quem não viveu essa história e pode dizer que nunca tinha ouvido nada igual?

Eu tive a “minha” Cida, que entrou em casa ainda menina, menor de idade, e saiu depois de casada. Ela morava no andar de baixo, ao lado da área de serviço e do quintal, separada do resto por uma porta de vidro que devia ser trancada à noite. Dividia o quarto e o banheiro com a cozinheira.  Tivemos várias, mas não me lembro dela ter sido consultada para dizer se a coabitação era satisfatória. Cida não reclamava, nunca.

Lembro-me da cena, quando ela pediu para ver minha mãe com o namorado, que já era conhecido da família. Os três foram à copa, sentaram-se em torno da mesa de fórmica vermelha e ele, nitidamente intimidado, pediu a mão da Cida à minha mãe. Como se ela fosse da família…

Sua mãe, a verdadeira e única, não estava sequer a par do pedido de casamento. Cida achava que a patroa sabia melhor que a própria mãe o que era melhor para ela.

Hoje, temos a chance de nos olharmos no espelho e vermos que o resultado nem sempre é satisfatório. Individualmente e como sociedade, a imagem que reflete é ruim, é feia, é a imagem da injustiça racial.

Se não formos ativamente antirracistas, estaremos sendo coniventes com a propagação do ódio, estaremos sendo racistas também.

Por isso  eu, você e todos aqueles que conheceram Iaiá, Cida e suas histórias temos a obrigação de ser como rabino Cukierman, Racistas em Desconstrução.

Desculpas Iaiá, desculpas Cida.