O nome de nossa esplêndida recompensa por escrevermos não é o lucro. É outra coisa – chama-se liberdade (Ursula K. Le Guin, escritora sueca)

Na crônica da semana passada, mencionei, muito de passagem, minha ligação com Monteiro Lobato. Foi uma relação tão forte, libertadora, que resolvi elaborar um pouco melhor o que aconteceu lá atrás e me trouxe, com solavancos, ao que sou hoje.

Com a leitura, sem sabê-lo, percebi que podia ser outros, muitos, inclusive aqueles detestados pela maioria. O Menino sonhava com máscaras diferentes. Queria ser o Minotauro, enquanto os amigos sonhavam em ser Teseu. Preferia o capitão Nemo ao invés de Ned Land e Aronax. Transformava textos que lia, reelaborava enredos, começava a experimentar o fascínio da escrita. Hoje, sinto calafrios quando tentam censurar personagens, como faz pateticamente a bisneta de Lobato, enquadrando-os em esquemas “aceitáveis”. Não consigo imaginar o sítio do Pica-Pau Amarelo amputado da tia Nastácia como a concebeu Lobato. A maneira como agia e pensava representa uma época. O leitor não é esponja, receptor passivo de conteúdos. Do meu jeito, inconsciente, filtrei o que era necessário e aproveitei todas aquelas narrativas, integrais, desenvolvendo a vontade de contar minhas próprias histórias. Censura que começa em tia Nastácia, nos ensinam as ditaduras, termina em fogueira de livros.

Combinando a excitação da descoberta dos livros com uma curiosidade que chegava a doer, planejei um retiro no Parque Nacional de Teresópolis, acompanhado por uma pilha de volumes. Era época da faculdade, ia trancar matrícula, me entupir de conhecimento. Repaginação do fool on the hill. Ilusão de calouro. Conhecimento não existe sem a experiência vivida, e isso não se faz em isolamento. Os iogues discordarão. Desisti a tempo e fui à vida.

Livros são fundamentais para fazer as perguntas que importam, para assimilar experiências de gerações, produzir encantamento. Alberto Manguel, admirável intelectual argentino, diz que a leitura é subversiva, capaz de transformar quem lê. Eu diria que, junto com a memória, nos prepara para olhar o mundo. No entanto, é preciso cuidado. Acumular informação não garante nada. Especialmente não vacina contra arrogância, presunção, egoísmo, ressentimento, solidão. Fui contemporâneo, na faculdade, de um estudante que parecia uma enciclopédia. Tanto que intimidava os que se aproximavam. Conheci pouca gente tão solitária quanto ele. Terminou mal.

Ainda na trilha de Manguel. Mesmo sem ser místico, longe disso, ele afirma que, por razões misteriosas, enamoramo-nos por certos livros. “Em algum lugar da biblioteca, há uma página que foi escrita só para nós”, provoca. Já tive esta experiência. Não numa biblioteca, mas num sebo, onde procurava sei lá o quê. No meio de uma pilha mágica e empoeirada, lá estava a autobiografia de Louis Althusser. Por artes de berliques e berloques, levei para casa. Logo nas primeiras páginas, descobri que o grande pensador marxista gostaria que os pais o tivessem batizado como … Jacques! Meu xará! Teve um final de vida trágico, mas viveu intensamente seu tempo e pincei muitas semelhanças com minhas incertezas e ansiedades. Como se tivéssemos sido não apenas contemporâneos, mas amigos íntimos. O diálogo com a escrita é grávido deste tipo de surpresa.

Não é pouca gente que acha que a busca por conhecimento tem que se dar, necessariamente, num clima severo, de austeridade monástica. Não é verdade. A leitura, mesmo de certos textos densos, pode ser feita com leveza, espanto e alegria. Prazer. Quem disse que seriedade tem que ser mal-humorada? Uma sátira de Horácio em latim, citada por mestre Paulo Rónai, diz o seguinte (desculpem o pedantismo): Ridentem dicere verum quid vetat? Ou seja: Que é que poderia impedir aquele que ri de dizer a verdade? Taí uma boa dica.

Abraço. E coragem.