Cuidado, não voa tão perto do Sol. Eles num ‘guenta te ver livre (Emicida, rapper)
Tipo do assunto que preferia conversar ao vivo, palavra puxando palavra. Como não dá, vou de dedos e teclas. Nestes dias de ira e ansiedade reprimida, o racismo, que às vezes se esconde atrás da cortina, voltou à tona. O assassinato brutal do soldador João Alberto Freitas, o Beto, reacendeu o debate sobre nosso racismo estrutural. Aquele que o antropólogo Roberto DaMatta definiu como “resíduo abjeto de um estilo senhorial e escravocrata de vida, que, pela chibata e pelo pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais”.
Não vou comentar as leviandades do general Mourão, que já se referiu a índio como “indolente”, a negro como “malandro” e exaltou o neto pelo “branqueamento da raça”. Também não vou analisar a pouca importância que se deu, por exemplo, à eleição das primeiras vereadoras negras de Curitiba e Joinville (esta última ameaçada de morte pela “ousadia” de ocupar “lugar de branco”). Quero levantar um aspecto desconfortável, negado, subestimado: o racista que lateja em cada um de nós, pequenos-burgueses bem formados, influentes, formalmente imunes aos achaques discriminatórios. Será que nos livramos mesmo da herança que aparta os negros com naturalidade, reservando a eles a marginalidade vitalícia? Não darei respostas categóricas, mas posso falar por mim.
Fui criado num ambiente sem negros. A vila de casas, na Tijuca, era habitada pela baixa classe média. Mesmo lá, fronteira fluida com a pobreza, os negros não tinham vez. Só entravam como domésticas e trabalhadores subalternos. O mesmo aconteceu na escola, todos nós filhos ou netos de imigrantes europeus. Imigrantes que, antes de desembarcar no Rio, só tinham visto negros, talvez, em anúncios de chocolate.
A uma das negras, o Menino ensinou rudimentos de ídish, idioma ancestral. Usou o livro escolar e a fez decorar as primeiras frases. Dos iz Serele, dos iz Berele. Esta é a Sarinha, este é o Bernardinho. Durante breves momentos criei um vínculo afetivo com aquela pessoa, sobre a qual desconhecia tudo: onde morava. o que fazia quando se liberava do trabalho. Os Grandes a consideravam uma invisível que varria a casa e lavava louça. Mais um item de móveis e utensílios, de quem ignoravam desejos e vida interna.
Cansei de ver, na televisão em preto e branco, desenhos animados estadunidenses que mostravam negros preguiçosos, parvos, submissos, enxovalhados. Nos livros de Monteiro Lobato, a quem devo o interesse pela leitura, a tia Nastácia não se diferenciava da empregada negra, gorda e sem rosto, que aparecia nos desenhos de Tom e Jerry. Retrato de uma época, com hierarquia engessada, onde, novamente citando DaMatta, “toneladas de privilégios neutralizavam todas as éticas”.
Mesmo inserido neste ambiente branqueado, não me tornei um racista militante. Longe disso. Acho, no entanto, que num nível inconsciente, foi impossível não me impregnar com tantos estereótipos. Isabela Figueiredo, escritora nascida em Moçambique de pais portugueses, narra como eles se referiam à população africana. Tenho vergonha até de reproduzir os termos. Eu, como ela, travamos uma luta diária para nos livrarmos desta influência viscosa. Somos, cada um à sua maneira, antirracistas em construção permanente. Como os dependentes químicos, não podemos relaxar. Os fantasmas de catacumbas ancestrais estão à espreita. Temos que nos colocar no lugar do Outro para compreender sua angústia e sua revolta. Não é fácil, como jamais será trivial imaginar como se sente um judeu que carrega gerações de pogroms e discriminações nas costas.
Tenho convicção de que, adaptando uma frase de Marx, a emancipação dos negros será obra dos próprios negros. With a little help from some friends, como aconteceu nos Estados Unidos, na África do Sul e nas colônias ultramarinas portuguesas. Gente como Joe Slovo, Mia Couto, Pepetela, Michael Schwerner e Andrew Goodman esteve na linha de frente nas lutas antiapartheid, anticolonialistas e pelos direitos civis. Brancos que ultrapassaram a cor da pele e mergulharam nas águas comuns da humanidade.
Abraço. E coragem.