Tenho comigo as lembranças do que eu era (Milton Nascimento)
Há uns dois anos, pouco mais talvez, a seção Memorabília da Folha de São Paulo publicou lembranças da Regina Casé. Com seu jeitão escrachado, lembrou a ligação afetivo-confortável com a poltrona mole, obra-prima do arquiteto Sérgio Rodrigues. A casa não podia ser imaginada sem aquele esqueleto de tauari forrado de couro e preguiça. Engraçado que ela foi pensar na poltrona a partir de férias remotas em Caruaru. Reinações da memória. “Minha memorabília é minha mobília”.
Meu móvel entrava pelo ouvido. Nasceu de uma carência. Melhor seria dizer combinação de carências. Um vizinho era vendedor da Anderson Clayton. Chegava ao mercado a margarina Claybom, que prometia nos salvar da alma de pedra das manteigas. Quem não esfacelou uma fatia de pão tentando lambuzá-la com manteiga recém-tirada da geladeira? Margarina, coquetel químico, não tinha esse problema. Pois o tal vizinho foi demitido. Na vila de baixa classe média, isso era a antessala do desastre. O que fazer?
Um dos remédios foi vender a rádio vitrola. Evolução do gramofone, era um móvel que não existia na casa do Menino. Casa seminua destas modernidades. O Grande topou o negócio, e pouco depois a caixa de madeira branca desembarcava na sala austera. Trazia leveza e promessa de música. Uma novidade !
No início, os sons pareciam se estender para além da eternidade. Quem já viu os olhos de uma criança ao ganhar um presente muito desejado sabe do que estou falando. Verdade que os botões do rádio tinham conhecido dias melhores, bom contato não era sua especialidade. A vitrola dava para o gasto, mecânica imutável de braço e prato, mas os alto-falantes … Imaginem o violino do Itzhak Perlman, Stradivarius que viaja em poltrona exclusiva nos aviões, com cordas legítimas compradas no Camelódromo da rua Uruguaiana. Na minha mão é só dez real ! Qualquer concerto para violino parecia aula do Bolinha.
Foi assim que comecei a educar meus ouvidos. Cheguei a pensar num adendo à Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo homem terá direito a um som limpo”. Bem ou mal foi na frente da caixa branca que vi os Grandes darem boas e raras gargalhadas. Um LP com a dupla de humoristas Dzigan e Schumacher produzia a mágica. Falavam em ídish, idioma que os Grandes não dominavam. Filhos de imigrantes, mas nascidos no Rio, foram educados em português. Mas a alma ancestral e rudimentos da então língua universal dos judeus eram suficientes para compreender os sketches. Um deles lembro até hoje. Um bombeiro conserta o chuveiro e, na hora de cobrar, enlouquece o cliente dizendo que ele poderia pagar quanto quisesse pelo conserto. Vifl ir fashtai. Tinha colocado dois novos shpecalingumalech (vai saber o que era isso !). A entonação, a melodia das palavras, tudo desaguava em riso. E o cinza da vida esmaecia por breves minutos.
Há 4.500 anos, era costume da realeza egípcia colocar na tumba de seus mortos um conjunto de bens que seriam usados no além-vida. Bebida e comida, por exemplo. Dependendo da riqueza do morto, colocavam até mesas prontas. Não consta que minha rádio vitrola, mumificada antes mesmo de chegar na casa do Menino, tenha sido encontrada em alguma pirâmide. Azar dos faraós. Não tiveram o privilégio de ouvir a guitarra de Hendrix num timbre inusitado.
Hoje, trato de combinar música sem estáticas ou alto-falantes rachados com a batalha diária pelas palavras. Fazem bom dueto. Agora mesmo, enquanto ouço o concerto para piano de Schumann (um dos meus prediletos), lembro Drummond: Palavra, palavra/(digo exasperado)/se me desafias/aceito o combate.
E la nave va.
Abraço. E coragem.