Ele estava só diante do espelho e segurou uma lágrima. Saiu logo para jogar golfe e, após algumas horas, voltou e viu um cartaz: “Você perde e todos nós ganhamos”. Uma jornalista escreveu que o viu entrar na Casa Branca, pela porta lateral, fazendo um sinal de positivo, mas sua arrogância tinha diminuído, seus ombros estavam caídos, seu abatimento a mostra. Lembrou à história do “Outono do Patriarca”, do Gabriel García Márquez. O protagonista do romance era um ditador com superstições, medos, onde o mal e o bem conviviam. Evidente que Trump não é um ditador, foi eleito e agora recebeu setenta milhões de votos. Entretanto, ataca a democracia que o elegeu e aí gostou, mas agora ataca as eleições em que foi derrotado.

Atualmente, as democracias estão ameaçadas desde dentro, ou seja, os riscos já não são tanto dos golpes, mas dos inimigos internos. O presidente derrotado hoje dificulta a transição, acusa sem provas, vive seu declínio magoado com a vida.

Trump está certo ao se sentir roubado, pois na sua imaginação ele ambicionava ser invencível, e seu delírio de nunca perder não se confirmou. O presidente que se imaginou rei está sem saber ao certo o que fazer. Entretanto, não está só, outro presidente, que também pensa ser rei, um reizinho para ser exato, segue ao seu lado e prometeu ser leal ao rei. Aliás, mais leal até que ao seu próprio país. Pobres presidentes que se acham reis, pobres povos que elegem pessoas cruéis. Talvez o psicanalista Jacques Lacan definisse esses reis como canalhas, pessoas sem empatia, mentirosos, perigosos espertalhões.

As massas, às vezes, amam líderes como se fossem representantes do Todo-poderoso na Terra. É preciso recordar os grandes ditadores da primeira metade do século XX, e os pequenos ditadores militares na América Latina da segunda metade do século XX. Todos, grandes e pequenos, se diziam salvadores da pátria, prometeram o paraíso e seus povos conheceram os infernos. Viveram de mentiras ditas com esperteza, apoiadas pelos donos do Poder. A Psicanálise, aos poucos, implica-se em estudos sobre a questão do Poder, essencial na vida em sociedade, essencial na vida de cada um.
As civilizações estão sempre ameaçadas, pois os comportamentos civilizados, os padrões de respeito aos costumes e a cultura são atacados. As pulsões destrutivas vivem à espreita para atacar sem dó nem piedade. Portanto, a pacificação de uma sociedade sempre corre perigo, como ocorreu nas guerras mundiais. Ditadores e presidentes enlouquecidos apoiados por massas sedentas de segurança, ameaçadas pelo medo da liberdade. Elas optam pela servidão voluntária diante do desamparo e se entregam a uma certeza ilusória.

As civilizações vivem as tensões entre a violência das arminhas, o desprezo pela vida e a pacificação criativa. Esse é o tema central do livro “Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do ‘habitus’ nos séculos XIX e XX”, de Norbert Elias. No subtítulo aparece a palavra “habitus”, que é uma sociedade de indivíduos na qual os indivíduos se diferenciam uns dos outros, mas compartilham uma língua, uma história, rituais, tradições, costumes, religiões. O ‘habitus’ é um espaço de interações onde as identidades são tanto pessoais como sociais. Elias estuda como o habitus alemão gerou o nazismo. Diante do choque que se vive hoje aqui, estudar o habitus brasileiro é essencial, pois a gente esquece as marcas da escravidão dos negros por três séculos e meio. O racismo estrutural integra nosso habitus hoje, junto ao ódio aos pobres como expressões da crueldade. Frente a essa realidade, é preciso defender o que é certo: a vida, a justiça social, e ser contra o racismo.