Nenhuma dor envelhece (Osmair Camargo Cândido, o Fininho, sepultador do Cemitério da Penha, em São Paulo)
Não sei vocês, mas as cenas que mais me comovem nesta pandemia são as imagens de pessoas que enterram seus mortos sem fazer a despedida convencional. Os ritos da separação definitiva ficam incompletos, as aglomerações são perigosas.
Não adianta racionalizar o sentimento de incompletude. O que prevalece é uma sensação de que algo muito sério foi interrompido, um nó nos gragomilhos que não desata. Descrição impressionante foi publicada pela Folha de S. Paulo, na cobertura do último Dia de Finados. Fininho, o sepultador, fala sobre o desespero das famílias, proibidas de se aproximar dos enterros: “Dias marcados pela dor e pelos gritos que chegavam antes dos caixões e se enfileiravam como carros em estacionamento. Apanhávamos os corpos, ainda na calçada, e de longe víamos as pessoas em total desespero gritando contra a morte (…) Seguíamos com o caixão sem flores, sem preces, sem acompanhantes. Mas os gritos permaneciam do lado de fora”.
Lendo essa descrição, me transportei para outras despedidas que não se consumaram. O ramo materno da minha família veio da Polônia, pequenas cidades, planos de vida limitados. Tocado por uma grave crise econômica nos anos 20, meu avô seguiu para Buenos Aires. Lá, trabalhou como clientelchik (comerciante ambulante), com autorização da prefeitura buenairina. A partir daí, alguns mistérios. Conta a saga familiar que voltou à Polônia para se casar com minha avó. Deu meia volta e, por motivos não esclarecidos, emigrou, já casado, para o Rio. Por que não Buenos Aires, onde tinha amigos e atividade legalizada ? Contei essa história para um amigo, que me sugeriu um enredo improvável, embora apetitoso. Numa milonga, Abraham teria se engraçado por uma dançarina de tango e a engravidado. Não podia retornar à Argentina, sob pena de levar uma navalhada de um parente da tangueira.
Pois bem, quem não saiu da Polônia acabou trucidado pelos nazistas. Pelo que sei, não foram poucos. Jamais conversaram comigo sobre o assunto. Como souberam do destino trágico de seus parentes ? De que forma reagiram ? O que sentiam com perdas tão dolorosas, sem corpos a velar, com a ausência inapagável de tantos familiares ? Há uma espécie de pacto de silêncio entre os que passaram por experiências tão traumáticas. É como se evitassem voltar no tempo e reviver tristezas tamanhas. Meu sogro, também polonês, com parentes exterminados na guerra, visitou Auschwitz nos anos 80. Na frente do campo de extermínio, abaixou a cabeça e chorou. Minha sogra disse que foi a primeira vez que o viu chorando. Diz um ditado ídish (reproduzo de cabeça): Trern zainen di zaif far di neshume. As lágrimas são detergente para a alma.
A cineasta Lúcia Murat, presa política durante a ditadura, foi torturada e viu companheiros de luta morrerem nas mãos de sádicos. Esses que um figurão da República hoje chama de “humanistas”. Ela diz sentir culpa por estar viva e que esse é um sentimento generalizado. A pergunta “por que sobrevivi e ele não ?” é angustiante. Quanta dor sufocada. Quanto grito parado no ar. Quanto vazio por despedidas que não aconteceram.
Na minha pré-história, botei mochila nas costas e viajei para o interior da Bahia, até Juazeiro, fronteira com Pernambuco. Estava em Bonfim, na Bahia, na pequena estação ferroviária. Havia um movimento febril, que não compreendi. Uma pessoa me informou que eram retirantes, fugindo da seca. Olhei para aquelas caras tristes, franzidas, maltratadas. Não estavam apenas esperando o trem. Tocados pela miséria, estavam se despedindo, muitos sem volta, de suas raízes, de muitas memórias afetivas, dos sons que deram forma à sua sensibilidade. Como nos versos de Patativa do Assaré: Se arguma notícia das bandas do Norte/Tem ele por sorte/O gosto de uvi,/Lhe bate no peito sodade de móio,/E as águas dos óio/Começa a caí.
Abraço. E coragem.