Levanto âncora. Um bocadinho. A sensação é estranha. Depois de sete meses de isolamento espartano, arrisco ir ao supermercado, a uma farmácia, caminho no calçadão da orla, lotado de kamikazes sem máscara. Inseguro, me desvio das pessoas nas ruas, mesmo daquelas que usam máscaras. É uma neura que, desconfio, vai demorar a passar. O mundo virou ameaça invisível, à espera de um espirro imprudente ou uma fresta desleixada. Coisas triviais, como ir ao barbeiro, fazer uma fezinha no bicho ou comprar um engradado de guaraná Jesus, viraram bicho-papão. Caso de vida ou morte.

No início do isolamento, virei atleta de sala-e-quarto. As caminhadas monótonas dentro do apartamento deram lugar a uma esteira, igualmente monótona. A gente anda, anda, e não sai do lugar. Deve haver aí uma metáfora inteligente ou uma conclusão genial, mas não sei qual é. A verdade é que, mesmo com esses exercícios tediosos, não consegui evitar uma pança esplêndida. Devidamente avacalhada pelos netos, que não se cansam de perguntar de onde veio esse barrigão. E dão nele uns tapinhas, confirmando que a visão grotesca não é pura imaginação. Sorrio meio sem jeito.

Já os pássaros parecem felizes. Nas árvores, celebram a vida à sua maneira. Voam, o que está sendo difícil para nós, mesmo como licença poética. Cantam neste tempo ruim, com ou sem nuvens. Agitam-se, numa liberdade que definha nos bípedes sem asas. Procuram seus pares em linguagens coloridas, comunicação interditada nos ninhos pandêmicos, cinzentos e acuados.

As emoções, para variar, flutuam. Não dá para enfrentar essa encrenca viral impávido colosso. A escritora argentina Silvina Ocampo, descoberta recente, diz que somos um compêndio de contradições, afetos, amigos, mal-entendidos. Somos mutantes e carentes, em suma. Um certo isolamento, via aberta à introspecção, é vital para qualquer um. No entanto, o impedimento do encontro, da troca, do toque, empobrece, atrofia e angustia. Acrescente-se a absoluta indefinição de quando vamos conseguir trocar a marcha e estará aí um convite à valsa Mephisto.

Em aulas à distância (ô praga !), minha neta, sete anos, aprendeu a jogar xadrez. Encantou-se com o jogo e me desafiou para partidas virtuais. A cada lance impacientava-se, e então, vovô, não vai jogar ? E eu mostrando que a gente tem que pensar antes de agir, as peças não têm vida própria, há uma coletividade em jogo. Veio o dia em que, nos visitando depois de longos meses de quarentena, ela viu tabuleiro e peças de madeira que, adolescente, ganhei do Grande. Quis levar para casa, sempre leva alguma coisa para nos fazer presentes em seu cotidiano. Pelo menos é assim que interpreto, na persistência narcísica dos analistas de botequim. Daquela vez não deu. O jogo de madeira faz parte do caleidoscópio afetivo que não pretendo liberar. Ao lado de peões e realeza, minha neta começa a aprender que frustração faz parte do jogo.

Quando comecei a aprender a jogar xadrez, ganhei dois livros sobre o jogo. Relíquias que conservo. Reproduções de partidas famosas, a arte da abertura. Adolescente, vivia uma fase de desafio à autoridade, de afirmação não sabia do quê. Nas férias de verão, Ilha do Governador, passava os dias estudando aqueles livros. Quando o Grande chegava, moído pela rotina triste, eu já tinha colocado as peças no tabuleiro e o desafiava para uma partida. Era a situação ideal. Se ganhasse, melhorava meu ranking de entrada na “adultice”. Se perdesse, confirmava a imagem heroica que pintava do Grande. Não sei quantas ganhei, quantas perdi, meu parceiro foi generoso. Ajudou a atravessar o rio tormentoso. Pena que caiu da ponte no meio da travessia.

Como não somos retilíneos, tem gente que permanece adolescente, nesta zona cinzenta, até a maturidade. Desloca conflitos semeados na insegurança dos 14, 15 anos para as relações adultas. Não costuma dar certo. Pior. Pode causar rupturas, às vezes definitivas. Faltou a eles um bom jogo de xadrez na hora certa.

Um abraço. E coragem.