Após ter sido uma vez mais vítima do terrorismo islâmico, a França vive em estado de choque. Desta vez, ao contrário  dos atentados de 2015, não foram os grandes números de mortos que abalaram a população. Foi apenas um morto, o que de certa forma tornou o ato ainda mais simbólico. Um homem foi decapitado; um professor de história, acusado por seus carrascos de ter dado uma aula sobre a liberdade de expressão.

Um jovem russo, de origem chechena, de 17 anos de idade, com estatuto de refugiado, cortou-lhe a cabeça em plena rua da pacata cidade de Conflans-Sainte-Honorine. Ele não conhecia o homem que assassinou. Até alguns dias antes nunca ouvira o nome de Samuel Paty. Mas fundamentalistas islâmicos, fichados nos serviços de segurança por serem radicalizados, chamaram sua atenção. O professor, como fazia todos os anos,  teria cometido o “crime” de mostrar aos alunos as caricaturas de Maomé numa aula de Cidadania, a propósito da liberdade de expressão. Teve o cuidado de advertir os alunos muçulmanos para que pudessem sair da sala de aula se quisessem. Mesmo assim, alguns pais de alunos, islâmicos integristas, se insurgiram nas redes sociais, alegando blasfêmia. O pai de uma menina, que nem sequer era aluna de Paty, colocou nas redes sociais um vídeo em companhia de um conhecido islamista, denunciando o professor e exigindo sanções. Em um outro vídeo, o agitador afirmava que o professor havia mostrado fotos de um homem nu, simbolizando o profeta. Mentira.

As caricaturas em questão já tinham sido usadas como desculpa para o atentado ao Charlie Hebdo cinco anos antes (12 mortos) e à recente agressão a dois jornalistas, apunhalados em frente ao antigo prédio do jornal.

A França é tida como o país que mais leva a sério a questão da laicidade, baseada na estrita separação entre o Estado e o divino e na liberdade religiosa, dentro do respeito individual. Laicidade é um dos pilares da République Française. Respeita-se o direito de cada indivíduo praticar ou não uma religião. 

Em nome desse respeito, ao contrário do que acontece em outros países, na França a blasfêmia não é punida. Aliás, a sátira não é reservada ao fundamentalismo islâmico. Não passa uma semana sem que Charlie ou o Canard Enchainédesacate indiferentemente um rabino, Moisés, um monge budista, Sidarta, Jesus, o papa.

O problema é que uma minoria de islâmicos radicalizados (nada a ver com a imensa maioria da população muçulmana francesa) se nega a obedecer as leis do país. Defende uma espécie de separatismo (termo utilizado por Emmanuel Macron), e exige que a charia, a lei islâmica, seja superior à Constituição. 

Certos imãs pregam a desobediência civil e a violência contra os infiéis, em nome da leitura de uma versão radical e polêmica do Alcorão. Isso fez com que algumas mesquitas fossem fechadas.

Na verdade, o tema da radicalização islâmica foi ignorado por governos anteriores, abandonado entre as mãos da extrema-direita, cuja propaganda fazia um nauseabundo amálgama entre o fundamentalismo e a comunidade muçulmana como um todo, para desembocar na condenação generalizada da imigração. Para evitar entrar no jogo de Marine Le Pen, optaram por fechar os olhos. Consequência: o tumor cresceu e criou metástase.

Mas verdade seja dita: não foi só a radicalização islâmica que decapitou Samuel Paty. Embora quem apontou para o alvo tenha sido os agitadores, acompanhados dos pais mais ofendidos com a exibição das caricaturas, é preciso levar em conta que  vivemos num mundo onde os conteúdos de ódio se tornaram virais. A violência, ao extremo da  decapitação, é resultado e causa, num círculo vicioso.

Como escreve a economista Maria João Marques no jornal Público, de Lisboa:  “Não é a primeira vez que as palavras de incentivo ao ódio levam a atos de violência e a mortes.”

As Nações Unidas, em seu boletim ONU Info do mês de fevereiro, foi categórico: “La haine sur les médias sociaux contribue directement à la hausse des crimes de haine contre les minorités”, em tradução livre O ódio nas redes sociais contribui diretamente ao aumento dos crimes de ódio contra as minorias.

Muitas vezes, a violência se limita às campanhas de assédio e ódio online. Em outras porém, as palavras de ódio frutificam. Jovens fragilizados e pessoas fanatizadas, prontas a endeusar mitos, se deixam enredar em ideologias promotoras de violência, tomam como ordens o ódio vomitado por terceiros, frequentemente por líderes populistas da hiperdireita como Trump e Bolsonaro.

Em agosto, em meio a protestos por um homem negro ter sido alvejado pelas costas pela polícia americana, um adolescente armado, de 17 anos, matou duas pessoas e feriu uma terceira.  Ele tinha viajado do Illinois ao Wisconsin, onde ocorriam os protestos, para impor a ‘lei e ordem’ – o mantra de Trump contra os Black Lives Matter.

Não foi tampouco por acaso que o número de assassinatos explodiu no Brasil de Bolsonaro, apesar da pandemia.

O ódio alimenta a violência dos islamistas radicais bem como da extrema-direita hipernacionalista e retrógrada. Ambos partilham ideias e ódios. São visceralmente contra a modernidade, a inclusão, a liberdade sexual. Usam a religião – muçulmana num caso, evangélica no outro – como forma de organizar cruzadas, que via de regra nada têm a ver com os valores religiosos.

A este título, o exemplo da ministra Damares no recente episódio da menina grávida, de 10 anos de idade, estuprada pelo tio, foi exemplar. Apesar do direito ao aborto ser reconhecido pela lei e pela Justiça, a ministra da goiabeira insistiu em levar a gravidez até o fim, tratou o médico e a menina de assassinos e, em total ilegalidade, divulgou o nome e o paradeiro da criança para a então bolsominion Sara Winter, formada por neonazistas ucranianos do movimento militar Azov e líder do grupo supremacista 300 do Brasil.

Esse ódio é o mesmo partilhado pelos fundamentalistas islâmicos e radicais de direita em relação aos gays, às feministas, aos transexuais, aos negros, aos democratas, enfim, a toda e qualquer alma que seja diferente da sua e não queira viver na Idade Média. É o ódio que mata e decapita.