Ainda há aqueles que, como o presidente do PSDB (outrora um partido de aparência respeitável), defendem o diálogo com o capitão, em nome da concórdia. Como se isso fosse possível. Conversar seriamente com Bolsonaro é o mesmo que negociar com o Estado Islâmico, como havia proposto Dilma Rousseff, na tribuna da ONU.
O presidente é a encarnação do mal, pelo que faz, pelo que não faz, pelo que diz, pelo que silencia.
O papel do presidente da República não é apenas fazer, ou seja propor reformas através da lei. Longe disso. A comunicação talvez seja hoje ainda mais importante.
A respeito, todos os líderes populistas, de Trump a Bolsonaro, passando por Modi, Orban, Salvini, Le Pen, não se comunicam pelas regras clássicas. Ignoram os canais tradicionais para se dirigir diretamente ao povo, ou melhor ao seu eleitorado, sobretudo através das redes sociais. O pior é que dizem tudo o que lhes vêm à cabeça. E temos aí um problema seríssimo. Por que? esqueçamos por um minuto Bolsonaro, hors concours. Falemos de Trump. O presidente dos USA, tempos atrás, lançou uma ideia que lhe veio à cabeça no meio de uma coletiva de imprensa: injetar desinfetante no corpo para limpar os pulmões do coronavírus. Lembram-se? Dois dias depois, vendo que a loucura que disse afetava a sua campanha eleitoral, voltou à público dizer que se tratava de “sarcasmo”. Pois bem, nesse meio tempo, muitos americanos, acreditando no presidente, tomaram desinfetante; houve inúmeras internações em hospitais (que já estavam abarrotados) para salvar os seguidores cegos de Trump.
Isso mostra o grau de responsabilidade de um presidente da República. Ele não é um cidadão comum, não tem o direito de dizer o que lhe vem à cabeça, sua palavra não tem o mesmo peso da palavra dos polemistas de mesa de bar. Sua palavra, como os seus atos, tem enorme valor simbólico. Governa-se através deles.
Em bom português, um presidente da República não pode colocar nas redes sociais um vídeo de “golden shower“. Não é que ele não deva, ele não pode, não tem esse direito. Não tem o direito de dizer que para combater o aquecimento climático vamos fazer cocô um em cada dois dias. Ele não pode mandar publicar no Diário Oficial um ato com assinatura que não seja a sua. Ele não pode dar banana para os jornalistas, mandar a imprensa calar a boca, dizer que tal jornalista é gay, ameaçar enchê-lo de porrada, fazer brincadeira de cunho sexual com uma jornalista, nem colocar os jornalistas num cercadinho disputando a palavra com os seus apoiadores. Simplesmente não pode, pois agindo dessa maneira desrespeita uma instituição – a imprensa – sem a qual a democracia não existe. E assim, desrespeita a Nação. Um presidente não pode escolher quais os veículos que participam das coletivas nem reservar a publicidade oficial para os amigos do rei. Não pode transformar uma mídia de serviço público em estatal a serviço do Planalto. Isso é, sim, violação da liberdade de imprensa.
Não pode atacar o Congresso nem a Corte Suprema, a quem deve respeito e obediência, afinal o STF, como bem disse Rui Barbosa, é a última autoridade com direito a errar.
O presidente não pode dizer que a facada que levou deve ser investigada e a morte da Marielle não; não tem o direito de defender milicianos, cuja atividade é ilegal; não pode nomear um nazifascista para ministro da Cultura nem um ministro da Saúde que não entende nada do assunto em plena pandemia; não pode tecer elogios rasgados ao general Pinochet, Alfredo Stroessner, nem a Carlos Brilhante Ustra. A apologia à ditadura militar é crime no Brasil, previsto na famigerada Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/50) e no próprio Código Penal (artigo 287).
O presidente não pode responder E daí, dando de ombros, quando é indagado sobre a escolha, para diretor geral da PF, de um amigo do filho que está sendo investigado; não pode indicar para o Supremo um farsante plagiador recomendado pelo mesmo filho; não pode ignorar que a primeira-dama recebeu em sua conta dinheiro suspeito; não pode dizer que a pandemia é um resfriadinho, porque os seus apoiadores incondicionais passam a desrespeitar o isolamento correndo soltos rumo ao risco de morte; não pode mostrar desprezo para com os mortos da Covid 19.
Esses e centenas de outros atos e palavras de Bolsonaro tiveram e continuam tendo enorme influência na vida das pessoas, na forma delas pensarem e agirem. Isso também é governar. Ele cometeu e comete diariamente atos de violação à Constituição. O exemplo que dá é o pior possível, menosprezando a exemplaridade, que faz parte da governança. Assim como os ritos, que foram jogados na lata do lixo.
Por que o problema, meu amigo, é que milhões de pessoas acreditam nele, se identificam com ele e saem por aí, em nome dele desrespeitando a lei, promovendo a desobediência civil, o Estado de Direito e as regras básicas da vida em sociedade. Essas pessoas dizem – e com certa razão – Se o presidente pode, eu posso.
– Se o presidente da Fundação Palmares pode chamar o movimento negro de “escória maldita”, eu também posso ser racista.
– Se o general Heleno pode lançar apelo ao golpe, eu posso defender a ditadura.
-E se o general Mourão pode defender o torturador Ustra, eu posso sair por aí distribuindo porradas.
Acontece que o capitão e seus asseclas cometem crimes cotidianos, até agora impunidos. Enquanto o cidadão comum corre o risco de ser seriamente sancionado.
Bolsonaro considera que só tem de prestar contas ao seu eleitorado cativo. Também acredita que membros nomeados de seu governo, servidores públicos, deputados e senadores eleitos em sua esteira devem lealdade a ele, e não ao país. Para tanto, conta com um cúmplice de peso na pessoa do Procurador Geral da República, fiel dentre os fiéis.
Hoje temos no Brasil dois lados: um movido a fanatismo e ódio, outro a angústia e desespero. Perdemos a racionalidade. Estamos num vale-tudo, que pode nos levar ao abismo. Nesse Brasil enclausurado só há uma porta, que indica a saída, o mais rapidamente possível, desse descerebrado chamado Jair Messias Bolsonaro que, apesar do nome, como ele próprio indicou, não faz milagres. O importante é que vá embora o quanto antes e que assim possamos tentar salvar a democracia. Se assim não for, como parece que não será, que ao menos seja derrotado, de preferência fragorosamente, daqui a dois anos. É o mínimo que os democratas, inclusive de direita, devem esperar. Mas será que em 2022 o capitão, os militares, os evangélicos, a bancada da bala e do boi, os milicianos largarão o osso por uma simples questão matemática do número de votos nas urnas?
É sempre bom lembrar que o poder tem gosto de mel e quem se lambuza fica viciado.