“Eu sou uma pergunta”, escreveu Clarice Lispector. Escrever desde os treze anos até morrer foi a forma dela buscar as respostas para suas perguntas. Clarice escreveu que era uma pergunta, e concluiu: “Sou tudo que não tem explicação/Sou alguém em constante construção”. É uma das maiores escritoras brasileiras, que será recordada no centenário de seu nascimento neste fim de ano, e sua editora já tem prontos os livros com novas capas. Um documentário sobre os cem anos de Clarice está no YouTube, e muito mais vem por aí. O tempo passa, sua obra permanece, ou melhor, cresce ano a ano com teses, ensaios, pois suas histórias, e perguntas seguem tocando os leitores.
O valor da pergunta foi estabelecido por Sócrates, passando pelos sábios talmúdicos e a história da ciência. A frase “eu sou uma pergunta” é uma das chaves para entrar no mundo misterioso de Clarice, como definiu o poeta Carlos Drummond de Andrade no dia seguinte à morte dela: “Veio de um mistério/partiu para outro”. Os mistérios que tocam a alma dos sofredores, dos perseguidos, dos angustiados em um mundo desamparado. Clarice teve a coragem de virar a vida ao avesso, a coragem de uma pensadora que viveu em constante construção, como escreveu, mas também, a partir de algum momento, em constante destruição. Sua tendência sofredora evoluiu, e seu analista disse que, mesmo sendo fantástica, nunca vira alguém com tanta ansiedade. O mesmo disseram alguns de seus amigos, e a própria Clarice confessou que não se aguentava, e aos poucos foi se sentindo cada vez mais só e abatida.
Comecei a ler Lispector pela sua crônica “Pertencer”, e fiquei impressionado com seu desejo de castigo: “Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e falhei”. O pensamento de sua vida foi dominado por crenças mágicas que curavam as doenças, e Clarice nunca ocultou seu misticismo. Ela bebeu no Judaísmo familiar, no Cristianismo do Brasil, nas cartomantes e fortaleceu suas crenças, que também justificaram sua necessidade de castigo. Em seu conto “A felicidade clandestina”, escreveu: “A felicidade sempre iria ser clandestina para mim”. A escrita foi sua saída vital: “Eu escrevo e assim me livro de mim e posso descansar” e “Sou tão misteriosa que não me entendo”. Leio Clarice e sinto vontade de abraçá-la, mas me sinto também abraçado, pois ela fala dela, fala da gente.
O estranho do qual tanto escreve Clarice, vive nos sonhos, ela revela o estranhamento, pois todo ser humano é habitado pelo desconhecido inconsciente. O estranho da escritora está também na crueldade como ela tão bem expressa na sua denúncia da violência em sua obra. Aliás, em 1968 esteve na primeira fila na famosa passeata dos cem mil no Rio de Janeiro contra a ditadura. Hoje está traduzida em trinta idiomas com sucesso crescente, porque os mistérios de Clarice são os mistérios da desconcertante condição humana. Às vezes, só às vezes, penso no absurdo do homem, como escreveram Kafka, Camus e a própria Lispector.
Na sua lápide no Cemitério Israelita está escrito seu nome em hebraico, Chaya, como determina a tradição judaica. Sua frase “Eu sou uma pergunta”, poderia ser estendida para nós, que também somos perguntas a começar pelos enigmas do nome próprio. Felizmente as crianças brincam, o mundo canta, e transforma parte do absurdo em graça, criam um mundo espirituoso, como essa pergunta de Clarice: “O que é uma janela senão o ar emoldurado por esquadrias?”.