“Inocente, apaixonados

Eu tava crente, crente

Que iria viver uma história de amor

Que cilada

Ela me machucou

Ela abusou do meu coração

Não era

Não era amor, era

Cilada”

 

(Grupo Molejo)

Iniciamos a história da minha jovem amiga com fragmento de música do Cazuza. Terminamos falando sobre Sophie Calle. Porém, depois de tudo que li e pesquisei nesses últimos dias, só o pagode do Molejão consegue dar conta do que vou escrever.

Duas conclusões iniciais: Ao contrário do que eu imaginava, o numerozinho circense do desaparecimento online é extremamente corriqueiro. Não ter consciência desse fato é só a prova de que o tempo está passando sobre mim como um trator. Quanto à minha amiga, ponho a culpa nos anos de namoro, quando se viu solteira não tinha ideia de que seria atirada na selva.

Minha primeira atitude para entender alguma coisa foi jogar no Google: “Bloqueios de pessoas amadas no Whatsapp”, ou algo assim. Li mais de cem depoimentos. Percebi que a maioria das bloqueadas era do sexo feminino, mas havia homens também. Quase totalidade de jovens. Só depois confirmei em uma pesquisa que essa prática é muito comum entre os millennials, pessoas que nasceram entre 1979 e 1995. Algumas histórias me chamaram mais atenção do que outras. Exemplifico: Uma moça, cujo relacionamento já tinha migrado do mundo virtual para o real, com saídas que deixaram de ser simples ficação e caminhavam para o namoro. Às seis da tarde, ele mandou uma mensagem via Whatsapp: “Estou saindo do trampo, louco prá chegar na tua casa e sairmos”. Ela se produziu, à espera da chegada do moço. Quando deu 20:00, tinha sido bloqueada. A outra, uma jovem que estava namorando uma moça há meses, relacionamento tranquilo, estável, até que a namorada fez a proposta de noivarem. Ela encomendou as alianças, levou o jantar preferido do casal e ia fazer a surpresa, já que tinha a chave do apartamento da futura nubente. Lá chegando, foi comunicada pelo porteiro que o apartamento estava vazio, a futura noiva havia se mudado no dia anterior. Como a moça era do norte do país, portanto dividiam os amigos dela em São Paulo, não havia ninguém que pudesse dizer o que aconteceu. O pior se deu quando olhou para o celular e viu que tinha sido bloqueada em todas as redes. Desesperada, ligou para a ex-futura sogra no Pará e essa comunicou fria e laconicamente que a filha havia mudado para a Irlanda e ordenado à família que não falasse nem a cidade que estava, nem que desse um meio de contato. Essa moça precisou de mais de dois anos de terapia. O terceiro caso foi de uma carioca, que mantinha um relacionamento com um americano há dois anos. Sempre se encontravam, faziam planos de se casar, a moça era bióloga pesquisadora e estava com tudo certo para fazer um doutorado numa universidade dos EUA. Ela falou com ele no domingo, por videochamada, ele alegou cansaço, disse que falariam no dia seguinte. Na segunda, ao acordar, viu que estava bloqueada em todas as redes sociais e a única notícia concreta que teve dele foi que ele mudou não apenas de casa, como também de estado.

O fato é que essa situação gera sofrimento imenso, pois não há um ponto final, não há explicações, não há um adeus, o que por si só já seria extremamente doloroso. Essa atitude tem um nome: ghosting. Derivado do inglês ghost, o termo tem sido usado como uma forma de terminar relacionamentos em que a pessoa desaparece como um fantasma, deixando de responder às mensagens dos aplicativos, às redes sociais, eximindo-se de qualquer situação. É o velho “saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou” na versão digital.

Ora, traições, juras mentirosas de amor, ilusões perdidas, nenhuma novidade, existe desde que o mundo é mundo. Nada de novo no front. Quem sou eu para dizer que na minha época enganações não existiam? A melhor história que conheço é a de um senhor que só tenho uma coisa a dizer: “Ainda bem que ele vivia no mundo analógico”. Vale a pena narrar o fato.

Tenho uma grande amiga cuja família migrou do interior de Sergipe para o Rio, foram morar na Baixada Fluminense. A matriarca com suas 5 filhas. A mais velha, noiva há dez anos, preparava-se para se casar. Quem não conhece os percalços de casamento de pobre, não sabe nada da vida. Partindo-se do princípio de quem casa quer casa, é uma verdadeira epopeia. Enxoval comprado aos poucos, carnês de geladeira, armário, cama, sofá, fogão, pagos com sacrifício e se contando sempre com o espírito comunitário que só se vê nas periferias: Com a falta de espaço na casa da família dos noivos, sempre tem uma boa alma que cede um quartinho para colocar o sofá novo ainda coberto de plástico, outro empresta a garagem para ir juntando o mobiliário, enfim… Finalmente o casal conseguiu alugar a tão sonhada casinha. Tudo pintadinho, móveis montados, no maior capricho. Faltando uma semana para o casal consumar o esperado enlace e ir, finalmente, usufruir de seu ninho de amor, o noivo, com a sutileza de uma mula, virou para a tia da minha amiga e comunicou: “Não vamos nos casar. Estou apaixonado por outra mulher, ela está grávida e eu vou assumir ela e a criança”. Se Angela Ro Ro disse que a vida de Rimbaud comparada à dela era a vida do Pato Donald, a vida de um desses Gasparzinhos bloqueadores comparada a isso é mais pueril que história da Luluzinha.

Festa suspensa, muito choro, a tia da minha amiga ficou tão desgostosa com a vida, que como apossada de uma Scarlett O´hara segurando um nabo, disse alto para quem quisesse ouvir: “Nunca mais homem na minha vida”.

Acontece que, como disse Platão, a vida é um Kinder ovo, né, mores? Agradáveis ou não, surpresas acontecem. Eis que um rapaz cego de nascença apaixonou-se por ela e começou insistentemente a fazer-lhe a corte. Ela bem que se esquivava, mas ele não dava trela. Mandava flores, fazia serestas em sua janela com um grupo de amigos músicos, um gentleman. Encantada com tanta delicadeza, achou por bem unir o amor à razão. Tivesse lido “Sonhos de Uma Noite de Verão” do bardo inglês, intuiria que a razão e o amor quase não andam juntos. Amava-o, é bem verdade, mas depois de escaldada, colocou o cérebro na frente do coração. E no que imaginava ser racionalidade, o que a levou a esse casamento foi: “Como é cego, nunca vai me sacanear”.

Casaram-se, tiveram três filhos, ele dividia a semana entre a Urca, trabalhava no Instinto Benjamin Constant e Belford Roxo, com mulher e filhos. Final da história? Ele tinha duas famílias. E durante vinte anos conseguiu administrar tão bem a situação que uma família não sabia da outra. Lembro como hoje da narração dessa história pela avó da minha amiga. Uma senhora sertaneja, prima de Maria Bonita, cuja nossa maior afinidade era saber rir daquilo que os demais acham a beira da desgraça. Com uma gargalhada gostosa e aquele sotaque delicioso, ela assim finalizou a história da própria filha (para os mais sensíveis, saibam que foi de forma nada politicamente correta, lembrando que se viva ela fosse hoje teria mais de cem anos): “Por isso que eu digo minha filha, D’us marca para não perder de vista. Imagina se esse homem não fosse cego? Ia ter um harém”. Podemos, nessa hora, em homenagem ao deficiente visual seresteiro, entonarmos em uníssono a linda música do Mestre Lupicínio Rodrigues: “Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei”. Com um talento desses, smartphone para quê, não é mesmo? Amadores.

Voltando ao assunto dos bloqueios, o que me deixou intrigada foi o porquê dessa prática estar ocorrendo com tanta frequência? Não estou falando de encontros esporádicos, ou relações que não saem do terreno virtual. E, sim, de pessoas que tiveram convivência no mundo real, dividiram a vida, por que lançam mal desse expediente?

Como disse anteriormente, não sou nenhuma estudiosa dos teóricos da contemporaneidade. Escrevo entre o susto e as impressões, com alguma leitura para não correr o risco de virar um Caio Coppola num debate da CNN e vocês me acusarem, como fazia com ele a Gabriela Prioli, de dar opinião de “orelhada”. Sinto que esse é um tema sério, que deveria ser estudado por uma equipe multidisciplinar, formada por psiquiatras, estudiosos da tecnologia, psicólogos, antropólogos e tal. Aqui é apenas uma crônica, bem despretensiosa.

O que posso falar é que há uma série de fatores que se entrecruzam e, no que toca às relações amorosas, com toda essa nova configuração de mundo, está havendo uma ressignificação visível. Poderia passar horas aqui dissertando sobre as características da sociedade contemporânea, mas não é o caso. Vamos à objetividade. Se temos tantas almas penadas vagando por aí, é apenas mais um brinde da maior tecnologia do século passado: A internet. Da mesma forma que se conecta, deleta-se. É a forma com que o sujeito moderno vive os dias atuais. Onde tudo, como diz Bauman, é fluido, é líquido. O que importa é ser visto, desejado, a busca incessante pela satisfação momentânea, intensa. Sendo assim, o outro passa a ser objeto de consumo interessante, até que apareça algo mais atrativo. São relações unilaterais, egoístas. No entanto, se formos olhar atentamente, toda essa máscara social está a serviço de cobrir a pobreza existencial. Existe o medo pavoroso da solidão, quando o sujeito se vê desconectado, sem ninguém para consumir, mergulha no pântano de sua própria miséria.

Li que nessas relações que começam na rede há um padrão de comportamento antes do ghosting propriamente dito. Há um termo específico para cada fase, sei que a do encontro está ligada ao amor exagerado. O indivíduo fica muito mais apaixonado pela ideia de se apaixonar, que a paixão propriamente dita. Como amar quem você não conhece? Minha amiga viveu intensamente essa fase. Mas, os filósofos do Molejão estão aí para lembrar: “Não era amor, era cilada”.

Acredito também na incapacidade que vemos todo o tempo das pessoas se colocarem no lugar do outro, reflexo desse mundo individualista. Deletar uma conta é simbolicamente deletar uma pessoa. Eu, antes de adentrar esse tema, brincava que pelos meus três planetas Martes, Vênus e Júpiter em Escorpião, sou uma espécie de serial killer que mantem suas vítimas vivas. Pessoas que me fazem muito mal são subtraídas do meu convívio sem dó nem piedade. Sou aquela que mata em vida, inclusive deixo um beijo para as pessoas que, mesmo vivas, estão mortas para mim. Só que isso é apenas uma metáfora. O ghosting é um processo traumático, violento, em que quem sofre fica suspenso no limbo emocional.

Para finalizar, dei uma olhada no Youtube sobre o assunto e fiquei horrorizada com o que vi. Existe uma infinidade de canais, onde pessoas que se dizem coachs, espiritualistas, usam a temática: “Como fazer seu crush ou seu amor te desbloquear rapidamente”. Aviso: É para os fortes. Uma dessas proclamadas espiritualistas me deixou boquiaberta pela diversidade de técnicas usadas. Numerologia, baralho cigano, equilíbrio energético, runas, cartomancia e, como não poderia faltar, física quântica. Cem mil seguidores, tá? Tem desde simpatias com velas para almas de desassossego até homens explicando que o bloqueio foi punição para a mulher, certamente ela mereceu. Uma apresentadora de um canal chamado TV Diamond, com milhares de seguidores, diz que “ser bloqueada é bom. Não pela visão do livramento do encosto (o que até faria sentido), mas sim porque, ao ser bloqueada, o homem está dizendo que se importa com a mulher”. Para mim funciona como aquela historinha do meu tempo de jardim de infância. Se um coleguinha do sexo masculino agredisse a dentadas uma determinada menina com frequência, era sinal de que “gostava dela”. E assim se perpetua o machismo nosso de cada dia.

O que tirei daí é que o ghosting é uma agressão séria, consistindo, a meu ver, numa das formas mais graves de violência psicológica moderna. Uma amiga terapeuta de jovens disse que a cada dia crescem demandas desse tipo entre seus pacientes. Jovens com autoestima partida, perdidos emocionalmente, a procura de uma resposta que dificilmente terão. Portanto amigos da área, se liguem nesses canais caça-níqueis do Youtube. É um desserviço.

Quanto a mim, enquanto termino o texto, dei um rolê no FB do Pluft, o fantasminha que rendeu essa crônica. Minha amiga está se recuperando, já conformada, se jogando no trabalho, entendendo que estava entrando numa furada. O que vejo agora, senhoras e senhores, nesse preciso momento, em outro post público é: O rapaz causador de tanto sofrimento ao lado de uma outra vítima, numa foto com corações pulantes, foto dos dois e o face dizendo: “Fulano e Fulana estão num relacionamento sério”. Depois vocês acharam ruim quando aquela inglesa quis se casar com um fantasma. Pelo menos ela sabia quem tava levando para casa. Tava errada?