O teu amor é uma mentira
Que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego
Você não pode ver

Não pode ver que no meu mundo
Um troço qualquer morreu
Num corte lento e profundo
Entre você e eu

(Cazuza)

Sou pessoa extremamente resistente ao novo, por mais estranho que isso possa parecer. Passei dez anos da minha vida estudando a oratória barroca, fechada no meu mundo das etimologias, imersa no pensamento de base analógica medieval, escondida no século XVII. O distanciamento temporal é minha zona de conforto, até porque é através do passado que consigo entender muito do presente. Principalmente no que toca a formação do Brasil. Não tenho certeza se essa frase é do Nelson Rodrigues, mas ela traduz bem o meu sentimento de mundo: “Não existe nada tão remoto quanto o passado recente”. O contemporâneo, o fragmentário, a pós-modernidade, a nova configuração do mundo, mais me confunde do que explica. Sim, “a mente apavora o que ainda não é mesmo velho”, pelo menos a minha. Eis aí uma das minhas limitações.

Acontece que não dá para se manter alheia a esse Admirável Mundo Novo. As mudanças se encontram em tudo que permeia nosso cotidiano. Um exemplo: Lidando com alunos do primeiro período de um curso universitário, idades que variavam entre os 17 e 21 anos, com uma filha adolescente, além de sobrinhos mais jovens, passei a ter uma enorme dificuldade de ouvi-los. Muito do que eles me falavam me escapava e, preocupada,  marquei um teste auditivo. Nesse mesmo espaço de tempo, amiga querida que mora há muitos anos na Europa e tem pleno domínio do idioma, tanto do francês quanto do alemão, esteve numa reunião na escola dos filhos, da mesma faixa etária da minha, para encontrar-se com a professora de francês dos meninos. Uma moça jovem, de vinte e poucos anos, conversaram em francês. Minha amiga ficou apavorada, porque mesmo tento total intimidade com a língua francesa, muito do que a moça falava ela não entendia. Coincidentemente me disse a mesma coisa: “Preciso correr para fazer um teste de audiometria, acho que estou ficando surda, tive uma puta dificuldade de entender o que a jovem professora dos meninos falava”. Acabou que a história cresceu e outras pessoas próximas, da nossa faixa etária, se queixaram do mesmo problema. Aquilo nos alertou. Não parecia provável que todos nós, que lidamos com jovens, estávamos sendo acometidos ao mesmo tempo por um surto de surdez, uma espécie de Ensaio Sobre a Cegueira para quarentões, apesar de que, nessa distopia de todo dia, nada seja impossível. Foi então que caiu a ficha. O problema é que com a internet, a linguagem em tempo real, o timing é outro. O discurso dessa geração tecnológica ganhou outra velocidade, cabe a nós correr atrás para entender. Eles estão falando mais rápido, e sim, estamos defasados.

Se isso ocorre no nosso cotidiano mais comezinho, imagina no macro. É o enorme fluxo de notícias que lidamos todos os dias, é a velocidade vertiginosa da mudança. Desde a queda do Muro de Berlim, da nova configuração do mundo, da globalização que antes era uma ideia tornando-se rapidamente uma realidade e a tecnologia de informação ali, propulsora de toda uma revolução. Sou de uma das últimas gerações analógicas, o que por si só não explica minha irredimível incompetência para operar as novas tecnologias. O internauta aqui, a par de todas as novidades, é o meu pai e ele tem 81 anos. Se um computador pode ter mais de 50 programas, eu só uso a máquina mortífera para escrever no Word, entrar nas redes sociais e enviar e-mails. Grosso modo, sou como um chimpanzé com uma metralhadora na mão. Nunca correrei o risco ser incriminada por baixar filmes, por exemplo, muito mais pela falta de talento e habilidade do que por convicções ideológicas. Smartphone, então, é uma piada. E, em minha defesa, digo que não estou sozinha nessa! Volta e meia gafes são cometidas por mim e por amigos próximos. Enquanto os jovens conseguem navegar nas redes sociais, ouvir música, olhar o notebook ao mesmo tempo e dar uma olhadela de relance na TV, eu mal consigo coordenar uma única tarefa. Dia desses alguém mandou uma mensagem para lá de escalafobética, quis dividir com amiga pessoal seguindo a máxima de: “não verei isso sozinha”. O problema é que printei a tela e… enviei para a própria pessoa. Apavorada, vi o risquinho azul, ela já tinha visualizado, e parti para o improviso. Dei uma de João-sem-braço e escrevi abaixo do print: “Reveja o seu discurso”. A pessoa ficou intrigada, perguntou o porquê de tal revisão e escrevi coisas tão absurdas que tenho certeza de que ela achou que eu estava drogada ou num surto esquizofrênico. Antes passar por doida que fofoqueira, pensei. Tem também a impagável história de amiga que conversava ao mesmo tempo com o grupo de família e com o crush. Esse pediu pra ela uma foto “bem safada”. Sim, foram essas as palavras. Ela entrou na personagem, incorporou atriz pornô da Boca do Lixo e enviou para o boy. Foi tomar banho. Na volta, várias notificações. Frases com exclamações que começavam com “O que é isso?” a “Que loucura é essa?”. Pois é. Mandou a foto do que seria para o boy para o grupo de família. E, para o galã, enviou uma foto da primeira comunhão com as primas que a tia-avó havia pedido. Passou meses evitando almoços e festas de família. Outra amiga estava na Riviera Francesa, o marido trabalhando no escritório no Brasil e ela realizou o sonho de fazer topless. Quis registrar o momento para tirar o esposo do tédio, mas quem recebeu a foto foi um grupo que fazia parte de compra e venda de peças de carro, do qual saiu imediatamente. Claro que o assunto do dia no tal grupo foi: “Por que aquela maluca mandou foto de peito de fora?”. Esses são três exemplos de pessoas da época do telefone de discar, que faziam parte do penfriends e usavam ficha para ligar do orelhão.

Tudo isso é para explicar que não sou a pessoa mais certa para falar de tecnologia. Não tenho estofo acadêmico para tal, faço algumas leituras pontuais. Mas fui pega de surpresa por algo tão inusitado, que tomei a ousadia de dar meus pitacos sobre esse estranho mundo. Tudo começou quando recebi uma mensagem de uma amiga mais jovem, me contando sobre um momento que passava. Coisas do amor, nem sou a pessoa mais indicada para tal, mas talvez pela confiança e por ser eu mais velha, ela tenha me achado a pessoa certa. Escrevo aqui com autorização da mesma. É uma moça bonita, perto dos trinta anos, independente, bem formada, inteligente, terminou um namoro de longo tempo. Quarentena, home office, conheceu através de um FB da vida um amigo de amigo, igualmente solteiro, um pouco mais velho, inteligente, charmoso e a conversa foi evoluindo. Foram encontrando muitas coincidências, gosto musical (essas músicas experimentais, de bandas gringas, que nunca ouvi falar), trabalhavam em áreas afins, seus cachorros tinham nomes mitológicos, curtiam games e tudo que não entendo, signos complementares, histórias de vida parecidas, passaram por perdas familiares difíceis. Até eu, que como Oscar Wilde acredito que “o cinismo consiste em ver as coisas como realmente são, e não como deveriam ser”, a pessimista de carteirinha, que nunca caiu no conto da alma gêmea, botei fé na história. Moravam em cidades diferentes, mas isso era o mínimo. Já se organizavam de se encontrar, uma harmonia que vi poucas vezes na minha vida. Eu sou testemunha que não era apenas uma relação virtual. Com o tempo a admiração dos dois só crescia, se falavam todos os dias, lindo de se ver. Se preparavam para o encontro, ele viria para cá, passagem marcada, foram quase quatro meses de conhecimento e espera.

Para minha surpresa, recebi um áudio nervoso dela pedindo para falar com urgência comigo. Preocupada, entrei em contato e eis a história: No fim de semana tudo ótimo, horas em chamadas de vídeo, ansiosos com a viagem. Acordou com audiozinho perguntando se ela tinha dormido bem, chamando de amorzinho, conto as horas prá te ver e todas as cafonices que jovens apaixonados têm licença para cometer. Na segunda, ela viu ele online no Whatsapp, desejou bom dia, ele não visualizou. Ok, deve estar ocupado. Ficou na dela, trabalhando num projeto, nada dele se manifestar. Achando a ausência estranha, ligou para o fixo, ninguém atendeu. Estamos falando de uma pessoa comedida, não de uma stalker louca que manda mensagens compulsivamente. Dia seguinte, ele online, ela perguntou educadamente: “Está tudo bem com você? Mande notícias”. Ele visualizou para, em seguida, bloqueá-la. Não apenas do Whatsapp, mas de todas as redes sociais. Sem explicações, sem palavras, se nada.

Eu sou da época em que o pior que poderia passar era dar o telefone para um garoto que fazia questão de pedir, revelando encantamento e não pegar o dele porque, obedecendo ao código machista, “não vou pedir pra não achar que sou fácil”. E passava ódio, porque o desgraçado não ligava. A gente até tentava se enganar: “Ah, ele perdeu o papel, era tão pequenininho”. Mas, na boa, esse era o cúmulo do perdido. Nada além disso.

Isso, porém, de estabelecer uma relação, encontro marcado e sumiço instantâneo, eu nunca tinha presenciado. Se a comunicação é intrínseca ao ser humano, acho que diante disso até os homens da caverna, através de símbolos, gestos e grunhidos, não deixavam no vácuo desse jeito. O fato é que vi uma jovem assustada, sem acreditar no que tinha acontecido, e fazendo aquilo que nós mulheres somos condicionadas, nessas horas de rejeição: “Onde foi que eu errei?”. Não, querida, você não errou. Prá começar, você acabou de ser vítima do machismo mais escroto existente: ele te calou. Você foi silenciada. Bloquear é uma ação violenta, feita por homem então… O poder do discurso te foi tirado. De uma arquiteta estilosa, doce, mas com opiniões próprias, ele te transformou numa amish da Pensilvânia, de vestido comprido, toca na cabeça e obrigada a andar uns passos atrás do marido, sem nada poder dizer.

Apesar da tristeza, o que a impediu de surtar foi sua autoestima inabalável. Não passou pela cabeça dela procurá-lo. Já pela minha… Claro. Fui fuçar o FB da criatura. Logo de cara, foto pública, cercado por amigos idiotas, tomando vinho. Data: exatamente no dia do boqueio. Para piorar, uma postagem aleatória de fundo preto com a seguinte frase: “Esta sociedade patriarcal precisa mudar. E que seja rápido. Ela está repleta de erros”. Cínico. Bancando o feministo, olha que meigo. Não disse nada a ela. Mas desejei, no mínimo, um COVID básico para esse galã de rodoviária.

Ela está se recuperando. Eu, porém, fiquei muito encucada com isso. Eu até hoje só bloqueei e fui bloqueada por motivos bem específicos. Políticos, na maioria das vezes. Tudo bem às claras. Fui consultar o oráculo e ver o que ele poderia me dizer sobre esse numerozinho patético do desaparecimento. E aqui digo para vocês, experiência assustadora.

Lembrei de Sophie Calle, a artista plástica francesa que, em 2004, depois de uma longa relação com o escritor Grégoire Boullier, recebeu um singelo e-mail dele terminando tudo. Fiquei revoltada. Um e-mail!? Aliás, um e-mail bem do mequetrefe. Ali vi que a frase “O problema não é você, sou eu” faz parte da confraria universal dos machos. Achava que era made in Brazil. Não é. E, no final, afetuosamente, ele escreve: “Cuide de Você”.

Contrariando o que Grégoire imaginava, a espera de um escândalo de indignação na porta dele, Sophie ficou quietinha. Sumiu do mapa. Na real, convidou 107 mulheres, das mais diversas idades e ocupações, para fazerem uma análise, um comentário, uma manifestação, até esgotarem o e-mail do infeliz de acordo com suas profissões. De dançarina hindu a atiradora de elite pipocando bala no papel. Foram centenas de interpretações possíveis. Numa instalação genial, em que fotografia, imagens em movimento, escritos, desenhos dialogavam, ela apresentou essa performance na Bienal de Veneza e causou. Quando esteve no Brasil, fui ver a exposição três vezes. E penso que, até hoje, esse homem deve ter pesadelos com o coro de 107 mulheres. “Cuide de Você”, melhor nome para a exposição não havia. Só que nem todo mundo é Sophie Calle e consegue transformar um término doloroso de relacionamento em fina arte.

PS: Segunda Parte: ALMAS PENADAS, GRUPO MOLEJO E BAUMAN