Uma grande tristeza tomou conta de mim ao acordar nesta quarta-feira, último dia de setembro. Comigo, tendo a acreditar, boa parte da humanidade amanheceu cabisbaixa. Desapareceu um dos maiores gênios dos quadrinhos, um dos humores mais singelos e mordazes dos nossos tempos, ícone do politicamente incorreto: Quino, o criador de Mafalda, a menina que acompanhou minha geração pela vida.

A notícia me lembrou um episódio ocorrido há dois anos na Argentina. Em pleno debate sobre a descriminalização do aborto, sua imagem foi usada, sem a permissão de Quino, pelos fundamentalistas cristãos, atiçados pelas igrejas católica e pentecostais, em campanha contra a despenalização. Cartazes espalhados por Buenos Aires diziam: Mafalda é a favor da vida. Assinado, Quino.

Naquela altura se debatia a legalização da interrupção voluntária da gravidez, aprovada em primeira leitura da Câmara dos Deputados.

A declaração estampada nos outdoors do metrô portenho eram, evidentemente, falsas. Causaram estranheza. Apesar de seus 86 anos, tendo perdido a visão devido a um glaucoma, Quino reagiu illico presto: “Não autorizei o desenho, não reflete minha posição e peço que seja retirado”.

No Twiter e Facebook, Mafalda também se insurgiu: “Sempre e explicitamente defendi os direitos das mulheres”.

Procurado pelo El Pais, Diego Lavado, sobrinho e olhos de Quino, comentou que o desenhista sempre foi feminista, aliás o primeiro feminista que conheceu. Diego recebeu dele um comunicado, desejando sucesso às defensoras da descriminalização do aborto.

Na época, a Argentina só autorizava a interrupção da gravidez em casos excepcionais, como a violação e o risco de vida para a mulher – e, mesmo nestas circunstâncias, a interrupção da gravidez só podia ser feita depois da autorização de um juiz. Exatamente como em outros países da América Latina.

Mafalda, obviamente, não podia ser contra este direito fundamental das mulheres. Não era, não foi, nem nunca será. Por isso, junto com seu criador, festejou a legalização do aborto.

Ambos, certamente, teriam chorado de tristeza, dias atrás, ao olhar para cima do mapa da América Latina e constatar o que constatamos em terras fascistas: um governo pressionando uma criança estuprada a ir ao fim da gravidez, inclusive através de ameaças psicológicas e físicas.

Esta terra tem nome, que me envergonha pronunciar: Brasil.

Tirados os 40% que consideram o governo Bolsonaro bom ou ótimo,  os brasileiros que conservam um pingo de humanidade ficaram – espero -estarrecidos com a confirmação de que a pastora-ministra Damares, da pasta ironicamente denominada da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandou a violenta campanha para impedir que uma criança de 10 anos abortasse após ter engravidado, vítima de estupros repetidos praticados pelo tio durante quatro anos. Não que  Damares Alves merecesse o benefício da dúvida já que, num primeiro momento, mentiu e afirmou sua inocência, mas pela enormidade da maldade e desfaçatez.

Fiel entre os fiéis de Bolsonaro, ela enviou seus conselheiros para tentar dissuadir a menina de praticar um aborto legal, ou melhor dizendo, tentou impedí-la, mesmo sabendo que ela corria risco de vida.

O aborto é permitido no Brasil em três casos: gravidez decorrente de estupro, casos de risco à vida da mulher e fetos anencefálicos.

A pressão, coordenada pela pseudo pastora, tinha como objetivo transferir a criança de São Mateus (ES), onde vivia, para um hospital em Jacareí (SP), onde aguardaria a evolução da gestação e o nascimento do bebê. Sob o argumento de que se tratava de uma instituição de referência no atendimento de gravidez de risco, o Hospital São Francisco de Assis, de Jacareí, assumiria os cuidados médicos da menina, fazendo seu pré-natal até que ela estivesse pronta para o parto. Não por coincidência nem acaso, o hospital é parceiro da Igreja Quadrangular, cristã evangélica pentecostal de origem americana, que teve como expoente no Brasil o pastor Henrique Alves Sobrinho, pai de Damares.

Os representantes da ministra – Alinne Duarte de Andrade Santana, coordenadora geral de proteção à criança e ao adolescente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Wendel Benevides Matos, coordenador geral da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, mais dois assessores e o deputado estadual Lorenzo Pazolini (Republicanos) – foram encarregados da execução da transferência (a palavra mais correta seria sequestro). De quebra, vazaram o nome da criança para Sara Giromini, aliás Sara Winter, a quem Damares chamou no passado de “minha filha”. Winter foi treinada nos campos militares neonazistas do grupo Azov, na Ucrânia, com o objetivo de fomentar atos terroristas no Brasil.

Damares e seus asseclas atentaram contra o Estatuto da Criança e do Adolescente e transformaram a família em alvo de ameaças. Após inúmeras agressões, a menina e a avó  entraram para o programa de proteção à testemunha e foram obrigadas a deixar a casa em que moravam.

Mas nada disso parece importar nesta terra arrasada em que se transformaram os direitos humanos no Brasil, com os procuradores a mando do Planalto preferindo investigar o médico encarregado do aborto à ministra criminosa de Jesus na goiabeira.

Damares, Bolsonaros e seus adoradores de bezerros de ouro aproveitam a ocasião para mais uma investida destinada a intimidar as mulheres decididas a interromper a gravidez.

O Ministério da Saúde, ocupado por um general que nunca fez um curativo sequer, publicou no último dia dia 28 uma portaria com novas regras para atendimento ao aborto legal. O texto obriga os médicos a avisarem a polícia quando atenderem pacientes que peçam para interromper uma gestação em razão de estupro. Assim, aborto vira caso de polícia…

As equipes de saúde também deverão informar à mulher a possibilidade de ver o feto em ultrassonografia, numa clara manobra para demovê-la da decisão de abortar. Enfim, o texto determina que as pacientes devem assinar um termo de consentimento, onde consta uma lista de possíveis complicações na intervenção. Uma forma ignóbil de jogar em cima da mulher violentada a responsabilidade de um eventual erro médico que a levaria à morte.

Se não tivessem perdido seus pais, agora Mafalda estaria questionando a sociopatia bolsonarista, enquanto o Fradinho do Henfil daria boas e sarcásticas gargalhadas: Fodi o Brasil; rs, rs, rs, rs, rs