Na véspera de Yom Kippur recebi em uma rede social uma prece escrita por uma pessoa querida. A prece fala do momento especial que vivemos por causa do Coronavírus. Na súplica a pessoa confessa que desta vez não pede perdão pelos seus erros, pecados, omissões, e até mesmo para ser inscrita no Livro da Vida. Pede ao Eterno apenas compaixão com a humanidade e que nos livre deste mal que entre outras coisas nos impede de ver e ouvir os cantos nas sinagogas e de abraçar e beijar pessoas queridas.

Confesso que fiquei abalado com a proposição teológica modificada. Afinal, o Yom Kippur não é uma data para pedidos de qualquer espécie. Não pelo menos nas concepções que absorvi ao longo dos recém confirmados 60 anos de vida.

Se no início da vida religiosa ou espiritual judaica prevalece a imagem de D’us como um grande legislador e juiz ao mesmo tempo, e talvez até severo demais.

Não tenho mágoas desta fase, embora me seja absolutamente claro que esta imagem não corresponde às minhas atuais expectativas de um Ser Supremo, que habita e manifesta-se desde as partículas sub-atômicas até as incognoscíveis forças expansoras do Universo, convidando-nos a cada segundo da vida à meditação e ao encontro com todas essas forças organizadoras da vida, do pensamento, dos sonhos e significados da vida.

O fato é que encontrei sim, no judaísmo onde nasci, felizmente, fonte permanente de inspiração, motivação e construção do meu ser. E um dos sensos mais fortes que o judaísmo pode despertar em alguém é o de responsabilidade. É o de saber que pensamentos podem se transformar em palavras, palavras em atitudes, atitudes em costumes, e costumes em caráter.

Esta peste do século XXI, o novo Coronavírus esteve ao alcance de ser contido desde o início de sua expansão. Outros vírus piores já vieram, ainda neste século, e foram adequadamente contidos em seu potencial de disseminação e morbimortalidade. Tanto é verdade, que pelo menos uma grande nação, a China, utilizando-se de todas as lições de surtos anteriores, fez o que nunca havia sido feito e venceu espetacularmente a epidemia em suas fronteiras.

Outros países conduzidos por líderes ignorantes, insensíveis, brutais, sendo o melhor exemplo no momento o do Brasil, jogaram a ciência no lixo, e junto com ela, por enquanto, 140.000 vidas e imensos prejuízos ao sistema de saúde, à economia, e mesmo à cultura política local.

A questão é que esses líderes, como o nosso atual, não chegaram lá pelos seus méritos, apenas. Pensamentos, palavras, ações, costumes e caráter o puseram lá. Uma complexa maquinaria que intoxicou uma sociedade – que por sua vez, voluntariou-se ao envenenamento – e golpeou sucessivamente a democracia e suas instituições. No campo da saúde pública, o resultado dessas ações, mais do que anunciado, é o que temos.

Eu confesso que minha capacidade de perdoar pessoas que participaram de tudo o que contribuiu para a ascenção desta besta ao poder é muito pequena. Em especial, aquelas que jactam-se de um judaísmo “superior”, arraigado, pois não vejo, na cultura e história judaica, um único momento, período ou local que nos conte sobre o sucesso de tal empreitada, que encontra um forte comparador na década de 30 do século XX.

Eu confesso que me recuso a pedir a D’us, neste momento, que nos livre de algo que sempre esteve ao nosso alcance e responsabilidade. Sim, lutamos contra isso. Mas talvez não tenha sido o suficiente, é o que os fatos nos mostram.

Se posso (e devo) pedir a D’us alguma coisa neste Yom Kippur, é que desperte na consciência de cada pessoa que tenha movido uma única agulha neste imenso palheiro, que tenha disseminado uma única inverdade, uma única acusação falsa, um único ato de ódio puro e injustificável, uma única renúncia à busca da verdade, uma única indolência intelectual, que tenha contribuído ainda que com uma única “flutuação quântica”, um “efeito borboleta”, que culminou na ascenção do mal aqui e em outros lugares, o devido senso de responsabilidade. Que D’us não permita que fujam de suas consciências. Que D’us não permita que faltem ao seu dever de reparação. Que D’us não permita que a ignorância e o ódio prevaleçam. Que possamos ter saúde sempre, para lutar, lutar e lutar por todo o magnífico patrimônio ético que o judaísmo construiu ao longo destes milênios, pois este patrimônio, sozinho (ainda que não único, evidentemente), poderia sim ter evitado a catástrofe, se devidamente cultivado e reverenciado.

E que assim seja.