De cara, a coisa assusta. O que pensar quando você está prestes a entrar no período dos Dias Temíveis ? Não, nada a ver com a Covid-19 ou com a última batatada dos demolidores da República. São os Iamim Noraim, período de dez dias em que se celebra o ano novo judaico. Começa na próxima sexta-feira, dia 18, à noite, e termina dia 28, também à noite, quando o shofar é tocado e se quebra o jejum do Iom Quipur.
O que haverá de tão assustador nesta celebração da passagem do tempo ? Os religiosos acreditam que é nesse período que seu destino será selado por um juiz inacessível e implacável, ao qual não cabe apelar com as armas da razão humana. Para quem, como eu, a devoção é de outra natureza, os dez dias entre o Rosh Hashaná e o Iom Quipur podem ser um bom pretexto para meter o pé no freio e fazer um balanço da vida. Isso nunca é fácil, e não recomendo que seja feito como exercício solitário. Enfrentar nossas circunstâncias, nossa fragilidade, nossos mortos, nossas mortes. Perceber as consequências das nossas ações sobre indivíduos e sociedade.
Com o tempo, sempre ele, fui aprendendo que os significados dos Iamim Noraim são muitos e variáveis. Criança, eu os encarava como festa. Afinal de contas, as aulas eram suspensas, comidas típicas, adocicadas para atrair dias de mel, não faziam feio, as bobes eram craques. Já menos inocente, comecei a prestar atenção especialmente ao Iom Quipur. Cheguei a jejuar na adolescência, um jejum radical que não permitia sequer escovar os dentes. Prova de macheza pós-bar mitzvá, que, numa das vezes, terminou mal. Ensinam os faquires das escolas tradicionais que jejum prolongado se quebra com prudência. Biscoito de água e sal, um pedacinho de bolo, chá. Pois os adultos, igualmente famintos, resolveram cortar caminho. Encomendaram uma pizza. Daquelas pingando gorduras cis, trans, e outros babados. Passei mal a noite inteira, botando bofes e estrofes pra fora.
Com mais quilometragem, me libertei da liturgia severa e me dei o direito de entender os símbolos. Saí dos manuais e transitei para a arte de perguntar. O Kol Nidrei, oração que inaugura o jejum do Quipur, é uma espécie de feijoada completa. Tem de tudo. Uma de suas possíveis origens é exemplo de respeito às diferenças. Seria um legado da época da Inquisição, quando os judeus foram forçados a abandonar sua fé e se converter ao catolicismo. Sob pena de exílio ou, pior, fogueira. As palavras de abertura do Kol Nidrei dizem que, na congregação reunida, todos são iguais, aí incluídos os que cometeram faltas graves. Os que foram forçados a fazer o que não queriam não são discriminados. O espírito é de tolerância e acolhimento, democrático, tão importante quanto a sentença do destino. Mishivo shel malo, mishivo shel mato, com a autoridade do Tribunal Celeste, e com a aprovação do tribunal terrestre. As instâncias se equivalem, numa surpreendente concessão do dogma ao crivo social. Tudo cantado pelo hazan, o cantor litúrgico, numa melodia belíssima (que inspirou Max Bruch, um não-judeu, a compor uma das mais lindas peças eruditas de todos os tempos). Diálogo, democracia, arte.
Momento solene da sequência quipuriana é o Izkor. Lembrança, literalmente. Os que perderam familiares são convidados a rezar o Kadish, a oração dos mortos. Desde muito cedo eu a aprendi, e até hoje a sei de cor. Falar sobre a passagem do tempo é, inevitavelmente, lembrar da nossa finitude, parte inseparável de qualquer balanço de vida. Não com melancolia, mas como memória em trânsito. Converso com meus mortos, sempre torcendo para que estejam de bom humor. Já tomei shnaps com eles, outras vezes me deram boas palmadas, noutras gargalharam com sotaques diversos.
Às vésperas da virada de ano, peço desculpas a quem não compreendi e, involuntariamente, magoei. Também a quem ofendi com silêncio quando o afeto pedia diálogo. A quem frustrei, ignorei, subestimei, irritei. Que possamos reconstruir pontes danificadas pelas humanas fraquezas. Nenhum de nós é o nebech, o coitadinho do folclore ídish. Somos todos, consciente e inconscientemente, responsáveis por nossos atos. O nebech, lembram meus mortos, é aquele que, quando cai de costas, quebra o nariz.
Salve 5781 ! Gut ior ! Shaná tová ! Anyada buena !
Abraço. E coragem.